Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

ABESTIATUM


07\02\14

ENGRENAGENS


Perguntar a quem escreve o porquê de escrever é doído. Não basta haver tanto o que se dizer sobre tanta coisa… Aí, a pessoa argumenta que escrever não leva a nada, é inócuo, inútil, que as engrenagens sociais sempre se movem pelos interesses da minoria dominante. Treplico. Todo chef sabe que, por maiores que sejam o requinte, a raridade e a frescura de seus pratos, eles vão virar merda. Porém, o chef é um artista. Um artista não faz arte para que a arte tenha um sentido além de si. Isso é com os gourmets, que o saberão com sua alma, sua língua e suas tripas. Um artista faz arte para que ela dê sentido a ele mesmo. E ele a faz porque o sabe e porque o pode.
Uma crônica existe não somente para que a leiam. Ou um poema, ou um romance. Eles existem para que o autor coloque-se diante de si e dos outros, sem pele, sem escudos, a fim tanto de que conheça a si próprio como de que outros se reconheçam nele. Escreve-se porque a palavra une. Unidos, quem sabe, movamos alguma engrenagem…


07\02\14

O BRASILEIRO, E O LINCHAMENTO COMO UM DEVER CÍVICO


Foto: Reprodução/Facebook/Yvonne Bezerra de Mello (Vítima de agressões, Yvonne Bezerra de Mello desiste das redes sociais. “Coordenadora e fundadora do Projeto Uerê, musa do triste episódio da chacina da Candelária, na década de 90, a artista plástica Yvonne Bezerra de Mello deixou ontem o Facebook. Desde que impediu que o adolescente preso a um poste do Morro da Viúva (Flamengo, zona sul do Rio) fosse linchado por jovens da classe média, sua caixa de correspondência lotou com xingamentos e agressões as mais diversas. Diante da virulência do ataque, ela anunciou que está se retirando das redes sociais.” Veja a notícia aqui)

Fortaleza, anos 80. Era uma época em que ainda havia ladrões que roubavam roupas do varal e que assaltavam usando apenas cacos de vidro como arma. Era também uma época violenta, não se enganem. Havíamos acabado de “sair” da ditadura militar (para entrar em outra, mas só viríamos saber disso depois), e aquele espírito que misturava a ideia de virilidade, justiça, manutenção da ordem, violência e territorialismo (o “-ismo” é proposital) permeava o inconsciente coletivo do meu bairro, e o de todos os que estavam num “primeiro” anel periférico imaginário da Fortaleza boa, a Aldeota, ou seja, de todos os bairros em que havia gente pobre, mas não pobre o suficiente para serem chamados de favela. Éramos pouco mais que remediados. Não se ouvia falar de ladrão que assaltava de moto, que dirá, de carro. No máximo, de bicicleta. Era também época de linchamentos, os quais eram particularmente efusivos, cheios de espírito de coletividade, quase utópicos. Todos os homens disponíveis no momento e que fossem capazes de correr o suficiente por uns 500m, reservando força suficiente para lutar sozinho contra outro, recebia um chamado quase biológico para a contenda. É claro que “sozinho” é força de expressão. Juntos, somavam mais de vinte, sempre.
Lembro-me bem de alguns casos. Houve um em que um adolescente magro e mulato foi capturado e arrastado até o local do roubo, na rua perpendicular à minha, onde foi surrado pelos homens familiares ou amigos da vítima. As mulheres sempre se dividiam em incentivos à surra e apiedamentos suplicantes em prol do massacrado, embora nenhuma interferisse nunca para uma coisa ou para outra. Depois da surra, veio a humilhação. Um dos vizinhos, um dos maiores, mais fortes e mais famosos pelos maus bofes que tinha, dono de uma oficina mecânica, apareceu com uma garrafa de óleo queimado de motor, que nós lhe pedíamos às vezes para “envenenar” nossas bolas Dente de Leite. Agarraram o adolescente, esfolaram sua cabeça enfiando-a no vão de duas grades de ferro de um portão de modo que ele ficasse de costas para a rua, sem poder ajoelhar-se nem ficar de pé. Naquela posição, derramaram-lhe o óleo no corpo e começaram as lambadas com qualquer coisa que não precisasse ser lavada depois. Chinelos, tábuas, até mesmo boladas foram desferidas. Eu me lembro muito mais dos gritos dele do que da surra em si. Pareciam-me os gritos de porco que me traumatizaram na infância, quando meu pai me levava com ele para o Mercado São Sebastião, sempre muito cedo, e eu via bacorins amarrados pelas quatro patas unidas debatendo-se no chão imundo e gritando horrorosamente, talvez, que queriam viver. Eu me lembro também da sensação de justiça e de limpeza que tomava conta de todos, inclusive de mim, e da euforia excitante que era aquilo. Era como estar no limite, na corda bamba sobre o fosso do errado. Era maravilhoso.
Sempre me penalizava intimamente por não poder participar daquele ato cívico. Era muito novo, não tinha força física o suficiente, não era ainda homem o bastante. Anos mais tarde, aconteceu. Apareceu um homem também muito magro, negro, visivelmente alterado, gritando palavrões na direção do baluarte da nobreza da rua Gustavo Sampaio, a elite branca e varicosa que sempre sentava a bunda azeda nas cadeiras de balanço da calçada da esquina: as famílias e os circunstantes mais eméritos do meu bairro. Vale ressaltar que o “branco” não se refere à cor da sua pele somente. Suas almas pareciam ter sido lavadas com cândida nas caravelas. Seus narizes e olhares eram sempre judiciários, e seus gestos sempre oscilavam entre a benevolência de atirar pães a mendigos e a fatalidade do indicador apontado à imundície vicinal. Foi contra essa estirpe que o negro gritou. Não me lembro do quê nem do porquê. Estávamos na calçada a umas cinco casas de distância e vimo-lo tirar uma faquinha serrilhada de mesa não se sabe de onde e riscá-la no asfalto. Apesar do gesto, ele não avançou contra ninguém. Parecia estar marcando um território ou uma ideia, uma noção de que não tinha coxas brancas varicosas, cadeiras de balanço nem bunda azeda que nelas assentasse, mas sim uma existência, que comprovava a todos com os gritos e com a faca. Já íamos resolver aquele desequilíbrio estamental na mão, quando vimos a faca. Um de nós pegou da bicicleta e foi à guarita da PM, a fim de chamar a ordem a cumprir sua função. O negro magro percebeu. Começou a andar desconfiado como quem pressente, sem largar a faca, mas gritando menos. O policial chegou, e finalmente, deu-se o espetáculo. Corremos todos como cães, dentes arreganhados, ávidos pela pele a ser rasgada. Pegamo-lo. Apanhou de todos por um minuto, mais ou menos, menos, curiosamente, do policial, que não sabia sequer usar as algemas. Fui eu que o algemei. Tomei-as da mão do PM e disse-lhe, expus-lhe como era que se fazia. Quase quebrei o braço magro do homem nesse exercício de virilidade, de civilidade e de justiça que simbolizava que eu fazia parte dos meus pares, que eu era mais um capturador de maus elementos, mais um aplicador de penas, mais um justiceiro.
Ele foi preso, mas não por muito tempo. Quando o vimos novamente, na rua, andava torto, curvado, bodejando ofensas contra todos, porém mais baixas, mais sofridas, como se aquilo fosse o que restara do grito e da faca, que também foram entortados e diminuídos como a uma mola que nunca mais se expandiria, como se também tivessem lhe entortado a alma, mas não o espírito.
A essa época, eu já era outro. Já vinha me tornando outro. Desde quando, desde sempre, acho. Havia em mim um asilamento, um caminho pela margem da matilha, consciente de que não era dela, mas covarde demais para afastar-me. Busquei duas coisas a minha vida inteira: ser de um grupo e ser eu mesmo. Nunca fui nenhuma.
Na faculdade, enfim, em uma aula de Sociologia, o assunto do linchamento veio à tona. Alguns falamos o que pensávamos, casos surgiram. Calei-me quanto a isso. O professor, então, propôs um raciocínio. O que aconteceria com o linchado quando retornasse à sociedade? Em meu silêncio, eu sabia. Porém, o meu linchado em questão não era um bandido. O que nós havíamos feito foi tirar talvez para sempre a fé de uma pessoa nas outras, em si, em sua própria existência. Nós havíamos lhe dado o inferno. Quanto ao bandido, segundo o professor, deveríamos imaginar uma situação bem simples: ele cometeria de novo o mesmo erro? “Não”, gritaram alguns. “Ele aprendeu”. Aprendeu, obviamente, mas o quê? Não a mudar de vida. Não a entender o conceito social de “honestidade”, inculcado nele a custa de mãos e pés entrando por suas costelas. O que ele realmente aprendeu foi o que lhe ensinamos: a semântica exata da palavra piedade. Temos piedade entre nós. Com os nossos, com nós mesmos, somos ótimos em sentir piedade de nós mesmos. Mas, com ele, não.
A piedade foi o que ele aprendeu a não ter. Nunca mais ele se colocaria de novo nas mãos de linchadores, mas não porque aprendera o valor da honestidade. Ele só aprendeu que mãos mortas não batem.
E, assim, aprendi tão tardiamente o que tínhamos feito, o que meus vizinhos e pares tinham feito a vida inteira. Nós havíamos pegado o ladrão de varal e, a custa da tortura civil, do espírito coletivo do horror, transformamo-lo no que está aí hoje.
Perguntamos a nós mesmos “de onde saiu tanta violência?”, “como pode alguém fazer isso?”, “por que o Estado não toma providências?”. Não, não perguntamos a “nós mesmos”, porque “nós mesmos” teríamos a resposta. Criamos um Estado pós-ditadura repleto da representação de nosso espírito covarde, corrupto, desumano. Delegamos a esse Estado o poder de “limpeza social” que adoraríamos ter sobre os locais onde vivemos. “Bandido bom é bandido morto”, “reduzam a maioridade penal”, “implantem a pena de morte” são o nosso verdadeiro brado retumbante. Nós, os covardes, nós, os pseudofilósofos, nós, os que cruzamos os braços (mas mantemos os punhos cerrados e uma mancha de conforto nos olhos por alguém estar matando por nós), nós!

Foto: Google

Nesta semana, fomos representados por uma voz televisiva. Alguém que disse o que cada “brasileiro de bem” pensa sobre o que fizeram com o menor negro alvo de linchamento e preso nu a um poste em via pública por uma tranca de aço para bicicleta (veja a notícia aqui: “Adolescente é agredido a pauladas e acorrentado nu a poste no Rio”; o vídeo, aqui: “Adote um bandido”; e a apologia, aqui: “Direito de expressão”). Não pode haver uma imagem melhor do espírito cívico do brasileiro.


Em uma mesma fotografia (feita pela artista plástica Yvonne Bezerra de Mello), estão os ícones do crime e do castigo. Do castigo, é óbvio, mas, do crime…? Para a “âncora” (adoro essa catacrese, ela, em si só, já diz tudo sobre o telejornalismo) e para a grande maioria dos brasileiros, o crime está tão vinculado ao jovem que, ao fazermos uma analogia de outro comentário “cívico” também da autoria da “paladina”, este sobre a “crise de pós-adolescência” de Justin Bieber, que foi preso nos Estados Unidos por dirigir drogado e sem licença e resistir à prisão (assista ao vídeo aqui), percebemo-lo claramente! Bieber é americano, branco, jovem, artista, rico, lindo e idolatrado pelas fãzocas brasileiras. Bieber tem direitos que o jovem negro e inominado pela menoridade jamais terá. O linchado brasileiro já nasceu criminoso. Bieber tem o direito à piedade.
A “jornalista” pergunta com a sua melhor cara de representante do brasileiro reacionário: “o que resta ao cidadão de bem?”. Talvez, tornar-se, primeiro, cidadão; depois, se possível, entender o que significa “bem”.

07/02/14

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

DO TEMPO DO HOMEM


O tempo não é só aquilo que passa do lado de fora
que a chuva arrasta, que o chão traga
que vive na morte das árvores e mata o homem.

Tempo é aquilo que as casas emparedam
que o peito humano empareda
que a pele contém e apodrece
e que embota nódoas na parede dos olhos.

O que acontece fora
aconteceria ainda
se não fôssemos.
Mas, sendo, o que acontece cá dentro
é mais bonito que o panteão das estrelas
é mais triste que um planeta seco
é mais vazio que o vácuo entre os corpos.

O que acontece aqui dentro não cabe nos dias e nas noites
contadoras da história dos homens e de sua ausência.
Viver é uma coisa maior que a própria vida
e o tempo dentro da casa em que se vive
é mais que a eternidade inteira que nos bate à porta.


05/02/14

domingo, 2 de fevereiro de 2014

A PORRA DA HISTÓRIA DOS ÍNDIOS DO CEARÁ

Foto: Waleska Santiago, em Fundação Nacional do Índio - FUNAI

Pessoal, hoje, após mais uma teste de admissão para as Casas de Cultura, eu entrei na página do Facebook e me deparei com a seguinte postagem: Na prova da Casa de Cultura eu aprendi que eu preciso saber a porra da história dos índios do Ceará pra poder aprender inglês! (sic).



Levando em conta a repercussão negativa que ela causou, incluindo a criação de memes, eu temi que tanto a postagem quanto os comentários fossem excluídos, logo decidi reproduzir novamente na página das Casas apenas os meus, pois acho que a discussão sobre o tema é interessante. Aqui vão:
“Agora me deu uma mistura de preguiça com tristeza. Talvez a culpa seja do modelo de ensino, talvez seja o distanciamento cultural do o objeto de estudo em questão (a CULTURA dos índios do Ceará), talvez seja o enfado natural do candidato diante de uma prova... São muitos talvezes. Porém, temos uma certeza: a PORRA da história dos índios figurou mais uma vez na história dos indivíduos ‘não-índios’ como a subcultura da qual se tenta libertar.
Tristeza e preguiça. Porque, depois de tantos diálogos, de tantos exemplos, de tanta internet esfregando A PORRA DA HISTÓRIA DOS ÍNDIOS na cara da gente e durante um período efervescente de discussões acerca da importância do conhecimento das diversidades CULTURAIS (incluindo a CULTURA BRITÂNICA, é claro, entre tantas outras macro e microculturas, além das culturas de grupos sociais), e durante uma época de lutas e de movimentos sociais, a gente tem de se deparar ainda com o ‘complexo de vira-lata’ descrito por Nelson Rodrigues, que descreve o brasileiro como um autossabotador nato. ‘Ficar de frente para o mar e de costas pro Brasil não vai fazer deste lugar um bom país’, já dizia, se bem me lembro, a música cantada pelo Milton.
Quem sabe, se Hollywood fizesse uma série enlatada sobre o que é ser um índio no Brasil, a PORRA DA HISTÓRIA deles, depois de maquilada, estereotipada, macaqueada e, enfim, vendida em ‘drops’ semanais de drama erótico-social-tragicômico, não seria aceita pela gente? Contanto, é claro, que não escalassem nenhum ator brasileiro pra fazer os papéis principais, pois aí, ah, aí perderia toda a graça...
E, pra quem achar estranhos os substantivos ‘tristeza e preguiça’, ou pra aqueles que não os entenderam no contexto, eu explico: TRISTEZA e PREGUIÇA são os sentimentos que qualquer professor (no meu caso, de PORTUGUÊS, INGLÊS, ESPANHOL e suas LITERATURAS), tem diante de demonstrações de BURRICE. E, ainda, pra aqueles que acharem pesado o termo BURRICE, eu explico: BURRICE não é IGNORÂNCIA. Esta significa desconhecimento, coisa que se resolve mais ou menos facilmente. BURRICE significa que, uma vez exposto ao conhecimento em si ou ao seu aprendizado, o indivíduo nega-os, ignora-os, desaprova-os, desdenha deles etc. BURRICE é não pensar. Ou, neste caso, achar legalzinho pensar com ‘espírito-de-porquice’, modinha bem nojentinha entre os usuários facebookianos atuais.”
Apesar das aspas, o texto é meu. A discussão virou debate, voltou a virar discussão e terminou com a natural polarização entre os “certinhos cult” (como me chamaram, coisa que não tenho a menor ideia do que signifique naquele contexto) e o pobre garoto que foi mal interpretado, ou seja, entre os hipócritas e os não-hipócritas. O problema, o verdadeiro problema, é que todos perdemos com isso. Uma questão mal elaborada, uma prova difícil, um candidato reprovado, nada disso é o verdadeiro tópico. Se estendermos a imbecilidade do que foi dito, chegaremos, certamente, à xenofobia, à cegueira do preconceito regional e étnico que reina no Brasil, mas teimamos, no post, na polarização “cult versusversus… OS INJUSTIÇADOS”! Lembrando que o “injustiçado” em questão foi o garoto que escreveu “a porra da história dos índios do Ceará” (sic). Todos perdemos. Inclusive, as nações indígenas do estado do Ceará, que estão sendo expulsas de suas terras para construções estatais e privadas; que são tratadas como comunidades marginais; que são mantidas enterradas no esquecimento daqueles “não-índios” pelas escolas, pela TV, pelos 3 Poderes; e que (imagino) sequer estavam presentes na sala de prova para ver sua cultura, desta vez, aparecer num teste de seleção para a Casa de Cultura Britânica. Contudo, deve ter sido só coisa “para inglês ver”.

02/02/14

O beijo.

Por que tanto se fala como se grande coisa fosse? Porque grande coisa é quando tanto se fala.


02/02/14