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sexta-feira, 26 de julho de 2013

MALDIÇÃO


(Para Shirliane Aguiar e Carmélia Aragão, com quem tive a conversa de que nasceu este poema)

O escritor é um amaldiçoado.

Amaldiçoaram-no a ver, ouvir, sentir
tudo o que os outros não veem, não ouvem e não sentem;
e mais amaldiçoado ainda o é
por tentar fazê-los ver, ouvir e sentir,
como continuando-os em si próprios,
mas para além de si e para aquém de sua própria maldição,

a fim de tirar um pouco do fardo
de ser sempre fardado desta ordem,
que é nunca ter de seus um domingo, uma horta, um cão
que não estejam maculados das verdadeiras peles
dos domingos, das hortas e dos cães.

Escrever é parir
como parem as mulheres estupradas,
as únicas cujos olhos nunca se embaçaram
ante o que são os homens,
as únicas cujo coração nunca se quebrantou
pelo gérmen da vida:

as únicas que olham seus filhos com os olhos crus
e os são capazes de amar para muito além
do que ama toda a gente ordinária
que lhes entope os ouvidos da piedade tão característica
dos que têm inteiras ainda as entranhas.

Escrever é parir a morte todo dia
e, todos os dias, ter de amá-la.

26/07/13

Um comentário:

Fernando de Souza disse...

Obrigado, António. Fico muito feliz de meus textos me comunicarem pelos além-mares.
Você tem razão: meu blogue é feito com muito carinho. O texto deve ser sempre uma expressão de carinho (mesmo os revoltados, os escatológicos, os hereges), pois há sempre neles algo de nós que é o mais verdadeiro (o texto somos nós, só que de verdade).
Um abraço, meu caro.