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quarta-feira, 27 de março de 2013

RAIVA GRATUITA




Acho que todo mundo tem direito de ter uma raiva gratuita. Eu, por exemplo, odeio gente que fala sibilando os ss exageradamente, como se dissessem que não são, mesmo sendo, daqui da nossa grande taba do Siará-Grande. Ou como se, ao falarem assim, portassem um crachá fonético que lhes conferisse vênias de um comportamento qualquer, sexual, profissional… Boçalidade! Também odeio gente muito limpinha, muito imaculadinha. Tenho a impressão de ver cabaços gigantescos, impenetráveis e ambulantes emitindo nãos. Odiar gratuitamente, descobri, faz um bem danado nos dias de hoje.
E o que são esses “dias de hoje” (perdoem-me, meus alunos de Redação, mas não posso evitar o lugar-comum) tão malfadados? Vejamos. Temos um quadro político-econômico que esfrega a palavra palhaço — pelada, maquilada, empapada de suor de escroto e bodosa de sarro e perfume barato — na nossa cara. Dentro desse quadro, temos um Calheiros — aqui, uma intervenção etimológica: tal verbete calhou de originar-se de “calha”, que, por sua vez, advém do latim canālia, “fosso”, “rego” (gostaria que sim, mas não achei cognação com o italianismo canaglia, “conjunto de pessoas malvadas”), “vala de esgoto” —, ressurrecto pela nossa cloaca adentro por artifícios senatoriais (servem para quê, mesmo, eles?). Por outro lado, temos um inesperável Tiririca, assíduo, porém desiludido com a impossibilidade de ser honesto, decente como havia projetado ser (e acabou sendo mais que o planejado), de forma que já anunciou sua renúncia ao mandato. O palhaço sem sorriso.
Renan (em francês, “foca”), alagoanozinho, primevamente um “bem-intencionado” opositor do nosso cassado ex-presidente Collor quando este era prefeito de Maceió, fez carreira “collorida” de mãozinhas dadas com seu antigo desafeto, arrochando daqui, “desoligarquizando” dali… Deu no que sabemos. Hoje, são de novo coleguinhas no Senado — do latim senātus, “conselho dos antigos” — graças ao distinto povo das Alagoas. Terrinha boa, as Alagoas…
Paralelamente, temos também uma cortina de fumaça ideológico-religiosa chamada Feliciano — a etimologia que vá à puta que a pariu! —, uma dessas lazeiras modernas oriundas do suor fervoroso escorrido das camisas proletárias em forma de dízimos e componente da autointitulada bancada evangélica — evangelĭcus, “portador de boas-novas” —, nomeado recentemente presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias – CDHM. Feliciano despertou com suas declarações homofóbico-racista-evangelizantes (porque não deixam de ser “boas-novas” adequadíssimas à CDHM) a fúria de vários setores da sociedade, que têm se manifestado galhardamente nos Facebooks da vida com as hashtags #felicianonãomerepresenta, #foraracista etc., desviando, assim, os holofotes da nossa cúria. Claro, há as manifestações de verdade, as quais incomodam profundamente pelo fato de não poderem ser ignoradas pela maior parte de nossa mídia adestrada. São bandeiras, apitos e fervores no horário nobre. Não vou dizer que sinto saudades de minha inocência do fora-Collor. Não sinto. Todavia, eles têm o que é necessário para que se mexa o tacho do melado: braços!
O ponto, meus caros, é que fazemos valer neste Brasil pós-pseudocataclísmico uma continuação da nossa cultura de mimetismo comportamental do lixo e do luxo de “além-mar”, o que engloba desde as macaqueadas reproduções juvenis alucinógenas neo-hippies (com o cravo e a canela tupiniquins, é claro) até o emancipacionismo humanista europeu emblemado nas tetas de fora das Femen e a rebelião pop universitária do Anonymous. Tudo, aqui, tão legítimo quanto um tênis coreano.
Não faço desta feita uma crítica oca, como se os movimentos acima fossem modinhas ilegítimas. O ponto é que nos falta verdade. Verdade em protestar, verdade em existir. O brasileiro se tornou nesta Terceira Revolução Industrial um cachorrinho correndo atrás dos pneus de uma Ferrari. Ou de um Camaro amarelo… Parece-me que vivemos dentro de diferentes seriados enlatados americanos, todos ruins. Com raríssimas exceções, somos um clichê de um clichê, somos antioriginais, somos ainda a colônia que não sabe viver fora dos sovacos portugueses, o pau-brasil extraviado, a orfandade ideológica!
Não haverá mudança possível enquanto não projetarmos algo em que mudarmos. Certo, tudo bem, apedrejemos Felicianos, encubramos Calheiros, repitamos nossa cultura novelesca e esperemos pelo próximo capítulo, pela próxima “boa-nova”, é o que tem de ser feito mesmo! O que mudará realmente? Como exemplo, note-se que tínhamos orgulho de um partido que acreditávamos nos representar. Hoje, temos um Genoino (condenado pelo Supremo Tribunal Federal – STF) que foi reempossado como deputado federal pela sétima vez. Adoraria chafurdar nas etimologias de “genuíno”, “deputado” e “supremo”, mas vou deixar isso para os mais curiosos. Sétima vez!, e ainda temos ceguetas panfletários esganiçando-se com cadáveres comunistas como “complô da burguesia” e coisas do gênero, meus amigos. É assim que queremos mexer o tacho do melado?
Por isso, acho que faz bem ter raivas gratuitas. Odiar intimamente sem motivo uma bobagenzinha cotidiana como um sestro da moda, um reality show e seus adeptos, uma nova gororoba musical em que quatro ou cinco culturas são ultrajadas. O retorno, o feedback emocional disso é, ainda que tímido e canhestro, como um selo de autenticidade. Um atestado. Um reconhecimento de nós para nós não só de originalidade, mas também, e principalmente, de sanidade mental. Uma epifania que revela a exclusão do homem em relação a um simulacro de realidade em que bem e mal coexistem e se alternam tanto no governo político das nações quanto no domínio do íntimo, dos credos, dos pensamentos e das filosofias das pessoas, as quais se tornaram artistas circenses de malabares numa performance tosca e improvisada de equilibrar o certo e o errado diante de uma plateia de crianças zumbis e pedagogos paulofreireanos.
Não me faz bem levar o absurdo tão a sério. Também não me faz bem divagar: “o que aconteceria se…, precisamos mesmo é disso, daquilo…”, assim como não me faz nada bem ignorá-lo, coisa, aliás, dificílima de fazer se eu tentasse. Sigo meus dias entre uma opinião venal (sacada mais do meu relicário de adolescência que das ponderações graves e balizadas do adulto) e um deixar estar, uma nonchalança irresponsável de quem prefere saber das coisas de sua rua a entabular olheiras com mísseis norte-coreanos apontados para o Havaí. Por exemplo, outro dia, respondi a um amigo que me perguntou o que eu faria se tivesse um filho homossexual o seguinte: “rapaz, ser feliz já é uma coisa tão difícil, tão rara… eu quero é que meu filho seja feliz, dê ele a bunda, ou não”. Incrível, como tem gente que se importa tanto com o que os outros fazem de suas próprias bundas — “a vida tem de ser mais do que categorizar uma pessoa pelo canal fisiológico ou emocional através do qual ela goze”, eu pensei. Era uma noite bonita, de céu aberto e estrelado. Estávamos os dois casais sentados numa barraquinha de praia, os pés descalços enfiados na areia, depois de um encontro fortuito na saída de uma aula que eu havia acabado de dar. Naquele momento, senti uma raivinha íntima de quem ignora os mistérios do universo que, vez perdida, conjura para que sejamos placidamente felizes.

27/03/13

Um comentário:

Eliézer Araújo disse...

raivas gratuitas à vontade, diariamente. Me senti representado e normal.