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quarta-feira, 13 de março de 2013

DUAS HORAS


Duas horas me separam sempre de alguma coisa.
Um inesperado, uma rotina, uma morte:
uma sombra que me pesa no colo às cinco da manhã.
Bebo da rotina.
Do seu amargo já sei.
Um antiácido me salva de dizer concreto,
ainda que aos pedaços,
o nome da sombra que embalo.
Espero um vento reinventar-me o dia,
mas vendo a alma ao cobrador do ônibus:
tenho sempre a impressão de que ali,
naquela catraca,
eu me divido.
Fico mais velho ali. E sempre menor.
No coletivo, a bovinidade me esquece a alma do corpo,
que grita, esfola, magoa, mas não sozinho!,
e ruminamos todos baixinho nossas sombras,
resmungando-as lisérgicas de um lado ao outro da boca
como cortes maciços de fumo de rolo
— cairia bem mais uma pílula…

Duas horas me ablacionam
como o faz a catraca do ônibus.
De parada em parada, de morte em morte, vou vivendo
e percorrendo a vida meio perdido, meio abandonado,
subtraindo da alma pedacinhos
que deixo caírem pela janela,
que deixo rolarem pela pista,
que deixo o vento levar e virarem sombra
que vá por aí a sentar seu peso sobre colos alheios
como um esmoler fantasmagórico, humilíssimo e sem mãos,
pedindo um corpo onde caiba,
implorando um onde se perca,
fiando um onde se ache,
onde se achem depois seus olhos, seus membros,
seus amuletos de infância,
suas gotas de horas esquecidas nos gumes dos marchantes
que lhe seccionaram as peças,
retiraram-lhe os nervos,
retalharam-lhe os bifes.
A alma é sempre comida para muitos.

Duas horas adiante, a manhã é sólida como uma esquina,
um contratempo que me faz parar e olhar para todos os lados.
À sombra das árvores alamedadas,
sacolejam-se pivetes de vidros amarrados aos tocos dos membros,
fanicos de almas repicando-se, refatiando-se.
Foi nisso que eles deram?
Pareço reconhecer um olhar que já foi meu,
um olhar nu, luzidio e tímido, um que perdi não sei onde…
Encaramo-nos e me envergonho.
Constrangido, enraivecido, baixo os olhos.
Pago impostos, compro a prazo, sustento igrejas, mantenho regimes!
Tenho mesmo de ser constrangido a reencontros indesejados?
Tenho de ser obrigado a ingerir mais antiácidos?
Dá-me ora vontade de voltar, ora ganas de assassínios.
Onde acho a arma definitiva?
E ainda!, esse vento dos infernos me entupindo a garganta
com a poeira onde lazeiram esses vermezinhos, essas amebinhas.
Deixem-me perder-me, deixem-me fragmentar-me ad infinitum,
tirem-me do esôfago essa sombra
que teima, que renite, que não quero!

Além do tempo, há imagens como por trás de uma parede de tijolos de vidro.
Coisas que ainda não sou, espaçadas, lentas, em romagem…
Coisas que me chamam.
Estou cansado não sei onde, não quero ir, quero que me levem.
Ir é dar os pés para que o chão mastigue,
e já nem sei mais se os tenho para comê-los eu mesmo…
Ficar é estar cercado por ilhas.
O que coloquei onde eu havia
pesa demais, não me leva o vento, não me acho vela, não sei mais nadar, afundaria…
O fundo do mar, quem sabe?
Quem sabe, não me cobrem coloridos os corais com seu cálcio,
e durmo de nunca mais ter fome nem sede,
sem frio, sem roupa, vestido de vida que me devora sem me exaurir,
que me dá a possibilidade de encalhar navios?
Os vidros translucidam tudo até que se convertem em retinas sem nervos,
e percebo horrorizado meus olhos novos, duros e frios,
olhos de um não ver, ou de ver-se para dentro, olhos-mágicos!
Olhos como de uma fotografia que o tempo não come.
Olhos de um verde-mar denso, opacos como os gudes de bilha
que deixei perdidos na areia imunda do beco antigo,
onde me esperavam todas as possibilidades desse mundo.

13/03/13

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