Número de sílabas (desde 11/2008)

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sábado, 30 de março de 2013

DIORAMA



Luminosidade é uma palavra grande.
Não cabe ela na chama da vela?
Ou só nas estrelas de janela
dos poetas ela embande?

Contudo, o céu monossilábico
ditonga abertamente o espaço,
onde cabem a lua e o sol melgaço,
e as estrelas, com seu mântico.

Já o poeta não é grande nem pequeno,
mas seu verso, de tão heleno,
tremeluz assim no leito da flama
como espraia plêiades no céu moreno.

Irradiando o ardor alheio
na noite da pele da dama,
brota na terra do seio
o fogo da calorama

e faz nascer no chão do seu terreno,
onde, outrora, só reinava o sereno,
a luz, que, indecente, derrama
centelhas pelo olhar de diorama.

30/03/13

quarta-feira, 27 de março de 2013

RAIVA GRATUITA




Acho que todo mundo tem direito de ter uma raiva gratuita. Eu, por exemplo, odeio gente que fala sibilando os ss exageradamente, como se dissessem que não são, mesmo sendo, daqui da nossa grande taba do Siará-Grande. Ou como se, ao falarem assim, portassem um crachá fonético que lhes conferisse vênias de um comportamento qualquer, sexual, profissional… Boçalidade! Também odeio gente muito limpinha, muito imaculadinha. Tenho a impressão de ver cabaços gigantescos, impenetráveis e ambulantes emitindo nãos. Odiar gratuitamente, descobri, faz um bem danado nos dias de hoje.
E o que são esses “dias de hoje” (perdoem-me, meus alunos de Redação, mas não posso evitar o lugar-comum) tão malfadados? Vejamos. Temos um quadro político-econômico que esfrega a palavra palhaço — pelada, maquilada, empapada de suor de escroto e bodosa de sarro e perfume barato — na nossa cara. Dentro desse quadro, temos um Calheiros — aqui, uma intervenção etimológica: tal verbete calhou de originar-se de “calha”, que, por sua vez, advém do latim canālia, “fosso”, “rego” (gostaria que sim, mas não achei cognação com o italianismo canaglia, “conjunto de pessoas malvadas”), “vala de esgoto” —, ressurrecto pela nossa cloaca adentro por artifícios senatoriais (servem para quê, mesmo, eles?). Por outro lado, temos um inesperável Tiririca, assíduo, porém desiludido com a impossibilidade de ser honesto, decente como havia projetado ser (e acabou sendo mais que o planejado), de forma que já anunciou sua renúncia ao mandato. O palhaço sem sorriso.
Renan (em francês, “foca”), alagoanozinho, primevamente um “bem-intencionado” opositor do nosso cassado ex-presidente Collor quando este era prefeito de Maceió, fez carreira “collorida” de mãozinhas dadas com seu antigo desafeto, arrochando daqui, “desoligarquizando” dali… Deu no que sabemos. Hoje, são de novo coleguinhas no Senado — do latim senātus, “conselho dos antigos” — graças ao distinto povo das Alagoas. Terrinha boa, as Alagoas…
Paralelamente, temos também uma cortina de fumaça ideológico-religiosa chamada Feliciano — a etimologia que vá à puta que a pariu! —, uma dessas lazeiras modernas oriundas do suor fervoroso escorrido das camisas proletárias em forma de dízimos e componente da autointitulada bancada evangélica — evangelĭcus, “portador de boas-novas” —, nomeado recentemente presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias – CDHM. Feliciano despertou com suas declarações homofóbico-racista-evangelizantes (porque não deixam de ser “boas-novas” adequadíssimas à CDHM) a fúria de vários setores da sociedade, que têm se manifestado galhardamente nos Facebooks da vida com as hashtags #felicianonãomerepresenta, #foraracista etc., desviando, assim, os holofotes da nossa cúria. Claro, há as manifestações de verdade, as quais incomodam profundamente pelo fato de não poderem ser ignoradas pela maior parte de nossa mídia adestrada. São bandeiras, apitos e fervores no horário nobre. Não vou dizer que sinto saudades de minha inocência do fora-Collor. Não sinto. Todavia, eles têm o que é necessário para que se mexa o tacho do melado: braços!
O ponto, meus caros, é que fazemos valer neste Brasil pós-pseudocataclísmico uma continuação da nossa cultura de mimetismo comportamental do lixo e do luxo de “além-mar”, o que engloba desde as macaqueadas reproduções juvenis alucinógenas neo-hippies (com o cravo e a canela tupiniquins, é claro) até o emancipacionismo humanista europeu emblemado nas tetas de fora das Femen e a rebelião pop universitária do Anonymous. Tudo, aqui, tão legítimo quanto um tênis coreano.
Não faço desta feita uma crítica oca, como se os movimentos acima fossem modinhas ilegítimas. O ponto é que nos falta verdade. Verdade em protestar, verdade em existir. O brasileiro se tornou nesta Terceira Revolução Industrial um cachorrinho correndo atrás dos pneus de uma Ferrari. Ou de um Camaro amarelo… Parece-me que vivemos dentro de diferentes seriados enlatados americanos, todos ruins. Com raríssimas exceções, somos um clichê de um clichê, somos antioriginais, somos ainda a colônia que não sabe viver fora dos sovacos portugueses, o pau-brasil extraviado, a orfandade ideológica!
Não haverá mudança possível enquanto não projetarmos algo em que mudarmos. Certo, tudo bem, apedrejemos Felicianos, encubramos Calheiros, repitamos nossa cultura novelesca e esperemos pelo próximo capítulo, pela próxima “boa-nova”, é o que tem de ser feito mesmo! O que mudará realmente? Como exemplo, note-se que tínhamos orgulho de um partido que acreditávamos nos representar. Hoje, temos um Genoino (condenado pelo Supremo Tribunal Federal – STF) que foi reempossado como deputado federal pela sétima vez. Adoraria chafurdar nas etimologias de “genuíno”, “deputado” e “supremo”, mas vou deixar isso para os mais curiosos. Sétima vez!, e ainda temos ceguetas panfletários esganiçando-se com cadáveres comunistas como “complô da burguesia” e coisas do gênero, meus amigos. É assim que queremos mexer o tacho do melado?
Por isso, acho que faz bem ter raivas gratuitas. Odiar intimamente sem motivo uma bobagenzinha cotidiana como um sestro da moda, um reality show e seus adeptos, uma nova gororoba musical em que quatro ou cinco culturas são ultrajadas. O retorno, o feedback emocional disso é, ainda que tímido e canhestro, como um selo de autenticidade. Um atestado. Um reconhecimento de nós para nós não só de originalidade, mas também, e principalmente, de sanidade mental. Uma epifania que revela a exclusão do homem em relação a um simulacro de realidade em que bem e mal coexistem e se alternam tanto no governo político das nações quanto no domínio do íntimo, dos credos, dos pensamentos e das filosofias das pessoas, as quais se tornaram artistas circenses de malabares numa performance tosca e improvisada de equilibrar o certo e o errado diante de uma plateia de crianças zumbis e pedagogos paulofreireanos.
Não me faz bem levar o absurdo tão a sério. Também não me faz bem divagar: “o que aconteceria se…, precisamos mesmo é disso, daquilo…”, assim como não me faz nada bem ignorá-lo, coisa, aliás, dificílima de fazer se eu tentasse. Sigo meus dias entre uma opinião venal (sacada mais do meu relicário de adolescência que das ponderações graves e balizadas do adulto) e um deixar estar, uma nonchalança irresponsável de quem prefere saber das coisas de sua rua a entabular olheiras com mísseis norte-coreanos apontados para o Havaí. Por exemplo, outro dia, respondi a um amigo que me perguntou o que eu faria se tivesse um filho homossexual o seguinte: “rapaz, ser feliz já é uma coisa tão difícil, tão rara… eu quero é que meu filho seja feliz, dê ele a bunda, ou não”. Incrível, como tem gente que se importa tanto com o que os outros fazem de suas próprias bundas — “a vida tem de ser mais do que categorizar uma pessoa pelo canal fisiológico ou emocional através do qual ela goze”, eu pensei. Era uma noite bonita, de céu aberto e estrelado. Estávamos os dois casais sentados numa barraquinha de praia, os pés descalços enfiados na areia, depois de um encontro fortuito na saída de uma aula que eu havia acabado de dar. Naquele momento, senti uma raivinha íntima de quem ignora os mistérios do universo que, vez perdida, conjura para que sejamos placidamente felizes.

27/03/13

segunda-feira, 25 de março de 2013

DENTRO DA NOITE


Noite afora, as horas rezam caladas nos ponteiros e na alma.
Quando o sono vence o combate, o corpo, esgueirado entre a noite já ida,
sussurra e se rende sossegado, lânguido, suspirado.

No céu, ainda alguns vultos e estrelas. Tu contas as que caem.
Ao meu lado, partículas da noite ainda gemem e suam e se dobram e se unem
onde, há pouco, houve inteira essa mesma noite.

Se estico o braço, ainda toco e sinto o calor que nela deixamos.
Em teu seio, mora aconchegado o som morno do nosso cansaço.

Em teu olhar — esse olhar de gengibre, tão vivo e tão terno —,
estampa-se a entrega do meu:
um beijo que continua o beijo,
ao que me cobre a nudez com que teu olhar me despe.

Em minha boca, o teu gosto doce, amargo, salgado, forte, renitente.
E, nela, ainda um mesmo beijo continua o beijo dado.

Dentro dessa noite, fizemos nascer um calor solar
que aquece todo o espaço frio entre nós e as tantas outras estrelas
que, em suas constelações, observam-nos placidamente adormecer.

E raiam como nós.
E brilham como nós.

03/08/02

domingo, 17 de março de 2013

BIPOLARIDADE


A porta está sempre trancada
Do lado de fora
Ou do lado de dentro:
Nenhuma de suas metades nunca soube o que é passagem.

22/01/13

O ASTRONAUTA


Disse o astronauta quando viu a lua empoeirando suas botas
que nunca pisaram a sujeira terrestre:
— Que flor morrerá agora?

17/03/13

quarta-feira, 13 de março de 2013

DUAS HORAS


Duas horas me separam sempre de alguma coisa.
Um inesperado, uma rotina, uma morte:
uma sombra que me pesa no colo às cinco da manhã.
Bebo da rotina.
Do seu amargo já sei.
Um antiácido me salva de dizer concreto,
ainda que aos pedaços,
o nome da sombra que embalo.
Espero um vento reinventar-me o dia,
mas vendo a alma ao cobrador do ônibus:
tenho sempre a impressão de que ali,
naquela catraca,
eu me divido.
Fico mais velho ali. E sempre menor.
No coletivo, a bovinidade me esquece a alma do corpo,
que grita, esfola, magoa, mas não sozinho!,
e ruminamos todos baixinho nossas sombras,
resmungando-as lisérgicas de um lado ao outro da boca
como cortes maciços de fumo de rolo
— cairia bem mais uma pílula…

Duas horas me ablacionam
como o faz a catraca do ônibus.
De parada em parada, de morte em morte, vou vivendo
e percorrendo a vida meio perdido, meio abandonado,
subtraindo da alma pedacinhos
que deixo caírem pela janela,
que deixo rolarem pela pista,
que deixo o vento levar e virarem sombra
que vá por aí a sentar seu peso sobre colos alheios
como um esmoler fantasmagórico, humilíssimo e sem mãos,
pedindo um corpo onde caiba,
implorando um onde se perca,
fiando um onde se ache,
onde se achem depois seus olhos, seus membros,
seus amuletos de infância,
suas gotas de horas esquecidas nos gumes dos marchantes
que lhe seccionaram as peças,
retiraram-lhe os nervos,
retalharam-lhe os bifes.
A alma é sempre comida para muitos.

Duas horas adiante, a manhã é sólida como uma esquina,
um contratempo que me faz parar e olhar para todos os lados.
À sombra das árvores alamedadas,
sacolejam-se pivetes de vidros amarrados aos tocos dos membros,
fanicos de almas repicando-se, refatiando-se.
Foi nisso que eles deram?
Pareço reconhecer um olhar que já foi meu,
um olhar nu, luzidio e tímido, um que perdi não sei onde…
Encaramo-nos e me envergonho.
Constrangido, enraivecido, baixo os olhos.
Pago impostos, compro a prazo, sustento igrejas, mantenho regimes!
Tenho mesmo de ser constrangido a reencontros indesejados?
Tenho de ser obrigado a ingerir mais antiácidos?
Dá-me ora vontade de voltar, ora ganas de assassínios.
Onde acho a arma definitiva?
E ainda!, esse vento dos infernos me entupindo a garganta
com a poeira onde lazeiram esses vermezinhos, essas amebinhas.
Deixem-me perder-me, deixem-me fragmentar-me ad infinitum,
tirem-me do esôfago essa sombra
que teima, que renite, que não quero!

Além do tempo, há imagens como por trás de uma parede de tijolos de vidro.
Coisas que ainda não sou, espaçadas, lentas, em romagem…
Coisas que me chamam.
Estou cansado não sei onde, não quero ir, quero que me levem.
Ir é dar os pés para que o chão mastigue,
e já nem sei mais se os tenho para comê-los eu mesmo…
Ficar é estar cercado por ilhas.
O que coloquei onde eu havia
pesa demais, não me leva o vento, não me acho vela, não sei mais nadar, afundaria…
O fundo do mar, quem sabe?
Quem sabe, não me cobrem coloridos os corais com seu cálcio,
e durmo de nunca mais ter fome nem sede,
sem frio, sem roupa, vestido de vida que me devora sem me exaurir,
que me dá a possibilidade de encalhar navios?
Os vidros translucidam tudo até que se convertem em retinas sem nervos,
e percebo horrorizado meus olhos novos, duros e frios,
olhos de um não ver, ou de ver-se para dentro, olhos-mágicos!
Olhos como de uma fotografia que o tempo não come.
Olhos de um verde-mar denso, opacos como os gudes de bilha
que deixei perdidos na areia imunda do beco antigo,
onde me esperavam todas as possibilidades desse mundo.

13/03/13

domingo, 10 de março de 2013

ESTA HORA


Deixa passar esta hora, amor,
que o corpo não sabe do tempo,
nem do que ele faz com a dor;
nem nós, o que ela faz com o tempo,
que te morde a carne, que me tira o ar,
que nos cria um espaço de confinamento

em que nada é foz, e onde nada é mar.

Gritas o nome do diabo,
mas sou eu que chego.
E teu nome rezo, que é o meu apego.
Eu te afago e me aconchego,
e te colho, e rezo o teu nome,
que é tudo que sei quando quero saber de Deus.

Agnus Dei, lembro eu vago,
mas não a sorvo.
E esta hora teima a esfriar lá fora
menos que aqui demora.
Está frio,
está lento,
e o peso do tempo é um agora
que nunca aprendeu a andar.

10/03/13

HALOMANCIA


A saudade é como uma consoante muda,
um H etimológico
que se esconde inaudível por trás de vogais.
Ora, mas o que são horas se, quando oras,
ora te ouvem, ora te ignoram,
ora ficas a ver navios…
Há um cais para cada um de nós
que desespera
de olhar preso num horizonte sem bandeiras,
sem nomes, sem memória,
adivinhando no sal do mar uma pátria que o espera,
um adeus a ser dado,
um abraço que o receba.
A saudade é uma moça sentada
que sabe, acima de tudo,
esperar desesperada,
como uma roupinha velha dela menina,
que nunca mais vai sair para brincar.

10/03/13

NOVAMENTE, EM CASA


Senti falta do teu sorriso,
dos teus olhos grandes,
da tua boca que, entreaberta, diz-me de mim
o oco da ausência de que sempre fui feito.
Sim, que,
embora houvesse panos, estampas,
sobreposições de papéis,
carnes que me enchessem como grãos
a um saco de algodão branco
e me dessem forma e consistência,
sempre fui feito de ausência.
Hoje me voltaste.
Hoje podemos sentar e beber
e silenciar tudo que temos a falar.
Nos quadrantes da casa, a tua pele escura.
Em mim, a noite
e um silêncio que é tão maior que tudo
que é do tamanho exato de mim.

03/03/13