Acho que todo mundo tem direito de ter
uma raiva gratuita. Eu, por exemplo, odeio gente que fala sibilando os ss
exageradamente, como se dissessem que não são, mesmo sendo, daqui da nossa
grande taba do Siará-Grande. Ou como se, ao falarem assim, portassem um crachá fonético que
lhes conferisse vênias de um comportamento qualquer, sexual, profissional…
Boçalidade! Também odeio gente muito limpinha, muito imaculadinha. Tenho a impressão de ver cabaços gigantescos,
impenetráveis e ambulantes emitindo nãos. Odiar
gratuitamente, descobri, faz um bem danado
nos dias de hoje.
E
o que são esses “dias de hoje” (perdoem-me, meus alunos de Redação, mas não
posso evitar o lugar-comum) tão malfadados? Vejamos. Temos um quadro
político-econômico que esfrega a palavra palhaço — pelada, maquilada, empapada
de suor de escroto e bodosa de sarro e perfume barato — na nossa cara. Dentro desse quadro, temos um Calheiros — aqui, uma intervenção etimológica: tal verbete calhou de originar-se
de “calha”, que, por sua vez, advém do latim canālia, “fosso”, “rego” (gostaria que sim, mas não achei cognação
com o italianismo canaglia, “conjunto
de pessoas malvadas”), “vala de esgoto” —,
ressurrecto pela nossa cloaca adentro por
artifícios senatoriais (servem para quê, mesmo, eles?). Por outro lado, temos um
inesperável Tiririca, assíduo, porém desiludido com a impossibilidade de ser
honesto, decente como havia projetado ser (e acabou sendo mais que o
planejado), de forma que já anunciou sua renúncia ao mandato. O palhaço sem
sorriso.
Renan
(em francês, “foca”), alagoanozinho, primevamente um “bem-intencionado”
opositor do nosso cassado ex-presidente Collor quando este era prefeito de
Maceió, fez carreira “collorida” de mãozinhas dadas com seu antigo desafeto,
arrochando daqui, “desoligarquizando” dali… Deu no que sabemos. Hoje, são de
novo coleguinhas no Senado — do latim senātus,
“conselho dos antigos” — graças ao distinto povo das Alagoas. Terrinha boa, as
Alagoas…
Paralelamente,
temos também uma cortina de fumaça ideológico-religiosa chamada Feliciano — a
etimologia que vá à puta que a pariu! —, uma dessas lazeiras modernas oriundas
do suor fervoroso escorrido das camisas proletárias em forma de dízimos e
componente da autointitulada bancada evangélica — evangelĭcus, “portador de boas-novas” —, nomeado recentemente
presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias – CDHM. Feliciano
despertou com suas declarações homofóbico-racista-evangelizantes (porque não
deixam de ser “boas-novas” adequadíssimas à CDHM) a fúria de vários setores da
sociedade, que têm se manifestado galhardamente nos Facebooks da vida com as hashtags #felicianonãomerepresenta,
#foraracista etc., desviando, assim, os holofotes da nossa cúria. Claro, há as
manifestações de verdade, as quais incomodam profundamente pelo fato de não
poderem ser ignoradas pela maior parte de nossa mídia adestrada. São bandeiras,
apitos e fervores no horário nobre. Não vou dizer que sinto saudades de minha
inocência do fora-Collor. Não sinto. Todavia, eles têm o que é necessário para
que se mexa o tacho do melado: braços!
O
ponto, meus caros, é que fazemos valer neste Brasil pós-pseudocataclísmico uma
continuação da nossa cultura de mimetismo comportamental do lixo e do luxo de
“além-mar”, o que engloba desde as macaqueadas reproduções juvenis alucinógenas
neo-hippies (com o cravo e a canela
tupiniquins, é claro) até o emancipacionismo humanista europeu emblemado nas
tetas de fora das Femen e a rebelião pop
universitária do Anonymous. Tudo, aqui, tão legítimo quanto um tênis coreano.
Não
faço desta feita uma crítica oca, como se os movimentos acima fossem modinhas
ilegítimas. O ponto é que nos falta verdade. Verdade em protestar, verdade em
existir. O brasileiro se tornou nesta Terceira Revolução Industrial um
cachorrinho correndo atrás dos pneus de uma Ferrari. Ou de um Camaro amarelo…
Parece-me que vivemos dentro de diferentes seriados enlatados americanos, todos
ruins. Com raríssimas exceções, somos um clichê de um clichê, somos
antioriginais, somos ainda a colônia que não sabe viver fora dos sovacos
portugueses, o pau-brasil extraviado, a orfandade ideológica!
Não
haverá mudança possível enquanto não projetarmos algo em que mudarmos. Certo,
tudo bem, apedrejemos Felicianos, encubramos Calheiros, repitamos nossa cultura
novelesca e esperemos pelo próximo capítulo, pela próxima “boa-nova”, é o que
tem de ser feito mesmo! O que mudará realmente? Como exemplo, note-se que
tínhamos orgulho de um partido que acreditávamos nos representar. Hoje, temos
um Genoino (condenado pelo Supremo Tribunal Federal – STF) que foi reempossado
como deputado federal pela sétima vez. Adoraria chafurdar nas etimologias de
“genuíno”, “deputado” e “supremo”, mas vou deixar isso para os mais curiosos.
Sétima vez!, e ainda temos ceguetas panfletários esganiçando-se com cadáveres
comunistas como “complô da burguesia” e coisas do gênero, meus amigos. É assim
que queremos mexer o tacho do melado?
Por
isso, acho que faz bem ter raivas gratuitas. Odiar intimamente sem motivo uma
bobagenzinha cotidiana como um sestro da moda, um reality show e seus adeptos, uma nova gororoba musical em que
quatro ou cinco culturas são ultrajadas. O retorno, o feedback emocional disso é, ainda que tímido e canhestro, como um
selo de autenticidade. Um atestado. Um reconhecimento de nós para nós não só de
originalidade, mas também, e principalmente, de sanidade mental. Uma epifania
que revela a exclusão do homem em relação a um simulacro de realidade em que
bem e mal coexistem e se alternam tanto no governo político das nações quanto
no domínio do íntimo, dos credos, dos pensamentos e das filosofias das pessoas,
as quais se tornaram artistas circenses de malabares numa performance tosca e improvisada de equilibrar o certo e o errado
diante de uma plateia de crianças zumbis e pedagogos paulofreireanos.
Não
me faz bem levar o absurdo tão a sério. Também não me faz bem divagar: “o que
aconteceria se…, precisamos mesmo é disso, daquilo…”, assim como não me faz
nada bem ignorá-lo, coisa, aliás, dificílima de fazer se eu tentasse. Sigo meus
dias entre uma opinião venal (sacada mais do meu relicário de adolescência que
das ponderações graves e balizadas do adulto) e um deixar estar, uma
nonchalança irresponsável de quem prefere saber das coisas de sua rua a
entabular olheiras com mísseis norte-coreanos apontados para o Havaí. Por
exemplo, outro dia, respondi a um amigo que me perguntou o que eu faria se
tivesse um filho homossexual o seguinte: “rapaz, ser feliz já é uma coisa tão
difícil, tão rara… eu quero é que meu filho seja feliz, dê ele a bunda, ou
não”. Incrível, como tem gente que se importa tanto com o que os outros fazem
de suas próprias bundas — “a vida tem de ser mais do que categorizar uma pessoa
pelo canal fisiológico ou emocional através do qual ela goze”, eu pensei. Era
uma noite bonita, de céu aberto e estrelado. Estávamos os dois casais sentados
numa barraquinha de praia, os pés descalços enfiados na areia, depois de um
encontro fortuito na saída de uma aula que eu havia acabado de dar. Naquele
momento, senti uma raivinha íntima de quem ignora os mistérios do universo que,
vez perdida, conjura para que sejamos placidamente felizes.
27/03/13