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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

GLOBO DA MORTE

Calendula officinalis

Andava meio assim: “basta me chamarem, que eu vou”. A tormenta dos trinta anos soprada pela calmaria dos quarenta, um emprego no bolso, um homem a tiracolo. Não era de todo seu, sabia, mas não importava. Dava-lhe gozo e ombro, gostava de estar com ela. Todos gostavam de estar com ela, mas nenhum ficava. A cama tinha lençóis trocados de ano em ano, com raras demoras além disso.
Ela iria. Olhava a porta que separava dois mundos iguais — não entrava nem saía em lugar algum. Quando criança — e isso a assombrara muito! — vira um globo da morte num cirquinho de bairro. Pequeno, só duas motos. “Ele e eu”, pensou. Giros, vertigens, sustos, caos ordenado!, mas, depois, os dois saíam, o casal, tiravam os capacetes e faziam a reverência do espetáculo. Ela nunca os aplaudira em todas as noites que os vira desafiarem a morte. Sabia que não havia desafio. Tempo, marcas, velocidade, rotas, tudo predeterminado, uma morte ou um aleijão, sim, viriam se ousassem ir contra a coreografia. Estava farta de parceiros de dança… “Ele, não! Eles! Eles e eu…” Iria para onde a levassem.
Cortou os cabelos, calçou sandálias novas, planejou Franças e Espanhas, procurou por Deus na igreja, na Bíblia, na Cabala, nas mitologias pré-colombianas, cansou, fez tatuagem, o clichê da borboleta, mesmo estilizada em notas musicais, paquerou canalhas, deu, curtiu S & M, amarraram-na, gozou mais, fez ménage, grupal, tântrico, o tradicional romantiquinho num chalé em Blumenau com fondue e lareira… Ao chegar ao apartamento, não sentia nos pés descalços sobre o mosaico que mandara vir de Alcântara a gratidão do lar. Achou outro apartamento. Acarpetado, periférico, condomínio de luxo, térreo, frente para um átrio, estilo mediterrâneo. Covarde, não vendeu o seu. Alugou os dois, pagando um com o apurado do outro. Tentou preencher o novo consigo mesma. Inventou um self, um id, uma nova Madalena que nunca mais se arrependeria. Criou calêndulas porque gostava da sonoridade do nome e de Drummond. Pensou na família, “onde estão?”, convidaria para churrascos de domingos? Haveria de fazê-los?
Deu-se um mês, logo, um ano. O trabalho lhe exigia pouco. Geriatra bem-sucedida, montara uma clínica que levava seu nome e computava ótimos respaldo, qualidade e quadro de funcionários. Estava bem, gerenciava, apenas. Velhos, eram todos velhos, os pacientes e os médicos. Dera a dois de meia-idade de uma vez só, em sua cama, gritos, ótima noite, depois, amigável rescisão de contrato. “Médicos me saem melhor que prostitutos”, resolvera.
Naquela manhã, acordou, sentiu náuseas, “deve ter sido a vodca”, caminhou o corpo nu pela casa a esmo, meio perdida. Uma memória que achava ter deixado nos azulejos de Alcântara lhe servia de sombra pelo carpete branco. Perguntava-lhe… “iria?”. Foi ao lavabo, viu-se no espelho, não se viu em si. Um minuto, dez, meia-hora, celular tocando inaudível, mil mensagens, meio-dia, ela, estática, indo, indo… Sentou-se na cama do lado da edícula que trouxera de Aparecida, olhou a santa negra, beijou-lhe o manto azul, rezou maquinalmente a ave-maria como fizera lá, deitou-se fetal entre as seis almofadas de diferentes fronhas, indianas, sólidas, florais, abraçou-se à única que trouxera da velha cama, pôs entre as pernas outra, a mais dura, que, sob o quadril, arqueou-lhe a bunda tantas vezes para o seu gozo preferido, com as pernas abertas e o corpo descendente, como se estivesse sendo enfiada na cama pelos paus de seus canalhas ocasionais, o último, quando fora, não se lembrava… Como seria se os parceiros largassem o guidão e deixassem-se ao acaso? Iriam como ela? Perdeu-se nisso dando voltas, perseguindo-se, perdendo-se.
Encontraram-na pela denúncia do mau cheiro por parte dos vizinhos ao síndico e dono de seu apartamento e pela subsequente visita de um oficial de justiça como efeito da ação judicial perpetrada por ele junto ao Tribunal de Pequenas Causas. Morta, havia semanas. Nunca lhe bateram à porta, mas “quem era?”, “coitada”, “alguém conhece a família?”. Por interferência do filho do desembargador fulano, morador do mesmo bloco, cobertura, que promovia bacanais perdulários com putas e michês pré-adolescentes encharcados de heroína e crack, encerrou-se rápida a investigação e deu-se o laudo de morte acidental por apneia.
Porém, houve, ainda que nunca se descobrisse, quem não deixasse morrerem as calêndulas que habitavam o átrio comunal junto a samambaias, comigo-ninguém-pode, espadas-de-são-jorge e várias outras flores, dentre as quais, algumas humildes boas-noites-brancas, que, a despeito de sua simples beleza malgaxe, não eram, por ignorância de sua dona, bem-vindas ao requinte proparoxítono de suas flores.

06/12/12

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