Número de sílabas (desde 11/2008)

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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

SE EU MORRER HOJE, ENTERREM-ME EM SEGREDO


Se eu morrer hoje,
enterrem-me em segredo
para que não me achem o corpo, este corpo em que nunca coube inteiro,
nem meu espírito, nem minha alma.
Corpo, não te reconheço! Tampouco quero reconheçam-me na pedra fria!
Deixem-me indigente, anônimo, ignoto, um pedaço sem inteiro, uma peça sem artefato.
Também não me cheguem ao peito em prostrações nem me olhem muito
para que não me achem no estômago as palavras apodrecidas
que não disse nem ouvi, mas engoli secas, a vida inteira, por via errática.
Enterrem-me em segredo, sem lápide, sem reza, sem a lágrima amante desesperada,
para que não me venham depois os anjos — do céu ou do inferno —
murmurar-me o nome que nunca quis.
Memórias, castiçais, choramingos, não os quero.
Declino de todas as palavras, sobretudo as sinceras.
De verdade, quero só o peso definitivo da terra
que me há de livrar os ombros do peso terrível do céu.
Se eu morrer hoje,
deixem-me escoar o sangue todo, não tapem os buracos.
Deixem-me ir, que é por onde partirei.
Deixem-me como estou, com o que estou: comigo, e só comigo.
Eu mesmo me tomarei pela mão e me guiarei por entre os fugentes, os invisíveis, os clandestinos.
Não me permitirei mais neles esbarrar. Sei por onde ir.
Não se importem com os andrajos nem com as mortalhas clownescas.
Deixem-me descalço mesmo. Meus verdadeiros pés não doem.
Minhas mãos de verdade são feitas de sereno,
e o que sou sopra fácil pelo meio das árvores, que nem suas folhas mais maliciosas me sentem.
Se eu morrer hoje,
enterrem-me em segredo,
para que não me venham amigos, ex-amigos, ex-patrões, ex-tudo,
esfoliando-se obrigados a seus ternos,
ou roupas alugadas,
ou roupas horrendamente falsas ao que são,
fingindo à minha efígie murmúrios pestanejados
— “coitado”, “viveu bem?”, “Deus é que sabe a hora” —,
entre bocejos verdadeiros e falsos abraços.
Deixem que o segredo de minha ausência diga-lhes melhor
que a verdade da morte é que são todos os próximos,
e que da minha não soube, como não saberão as suas,
e que não há nisso espetáculo de heróis, nem éter, nem constrangimentos, nem vergonhas inomináveis.
Há a morte como há a vida,
e ambas há identicamente sem batismo, sem hóstia nem bênção,
sem o ceifeiro negro, sem o fluvial vime messiânico,
sem Ilítia nem Caronte,
sem a prece ao anjo da guarda e sem a incelência merencória.
Se eu morrer hoje,
enterrem-me em segredo,
porque estou farto da partilha da vida,
em que, ao nos darmos a fórceps,
não mais nos sabemos e somos outros, indecifráveis,
esfíngicos de enigmas que nos levam a própria vida a resolver, tais como
“quanto valho?”, “onde caibo?”, “a quem me confiarei?”…
E morrer compartilhado, repartido em lágrimas e lamentações,
isso eu não quero, isso eu não mereço!
Eu quero a integridade de minha partida, sendo ela só minha,
minha para que eu me veja na estação,
parado na plataforma,
como sempre fui e sempre desconheci:
o eu-morto que me acompanhou cabisbaixo, passo a passo,
magicando por que aceitava eu a vida forçar-me a ir buscá-lo.
Se eu morrer hoje, enterrem-me, por favor, em segredo,
para que eu possa me despedir sozinho de mim num abraço que nunca me dei,
e me beije os olhos, e diga-me de mim, finalmente, aonde ir.

26/11/12

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

CALIGRAFIA


Teu corpo é o meu livro,
e nele me escrevo




                          e te leio.

22/11/12

domingo, 18 de novembro de 2012

LUZ AUSENTE

Raquel Rodrigues - São

(Para Raquel Rodrigues, cuja arte me ilumina)

O sol é mais poético à noite,
quando ele só pode ser imaginado.
E quem imagina sente
com o fantasma de uma presença
lhe cantando verdades mágicas
ao ouvido da alma.

18/11/12

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

NÃO QUIS COISAR… OU “FIFTY SHADES OF VANITY”

O tabloide britânico Daily Mail publicou hoje, dia 14 de novembro, que uma senhora londrina de 41 anos, empresária bem-sucedida (tem renda anual de £400,000), decide pedir divórcio por seu marido não corresponder às suas fantasias sexuais liberadas depois da leitura do best-seller Cinquenta tons de cinza, de Erika Leonard James, publicado no ano passado (leia o artigo em inglês aqui). Não o li. Não por ideologia (ou falta dela) ou coisa que o valha, mas por minha preguiça literária, mazela que admito envergonhadamente. Tenho preguiça de ler como tenho preguiça de tantas outras coisas que me são deliciosas, como pescar, subir serra, tomar banho de chuva. Talvez, tivesse preguiça de pensar em fazer sexo como essa senhora pensou. O seu infeliz (será?) marido não quis praticar com ela o sadomasoquismo e o bondage, o que se tornou o motivo do litígio. Porém, não tive preguiça de pensar nessas pobres criaturas. Uma, pega de surpresa pelo desejo inédito da outra, a qual desenterrou uma fêmea inventada das páginas de uma obra comercial. E o amor, minha gente?
Não quis coisar… Agora, sem brincadeiras! Apesar de não podermos conjeturar sobre o relacionamento dessa égua com esse bocó, esse é um fato sintomático de uma constante nos relacionamentos contemporâneos, que é o vínculo da sua existência à satisfação egoísta dos membros. Talvez seja a pior herança do hedonismo da minha geração (os nascidos ou adolescidos entre 1970-80): a defesa intolerante e acéfala da “bandeira do eu”.
Quando vamos parar com essa sala de espelhos? Viver, meus caros, só é bom quando usamos o prefixo alomorfe “con”. Entretanto, o sexo freudiano, que tanto povoou a mente dos teóricos em educação, deu cria: o sexo cinematográfico (ou, no caso, o literário).
Não basta amar. Tem de amar e foder como um sátiro, uma ninfa ou (o ápice da competência!) os dois ao mesmo tempo. Às vezes, amar é até mesmo descartável. Amar incomoda, gera expectativas, rugas, refluxos. Ah, quem nos dera, apesar dos joanetes entalados em scarpins e cromos alemães, esses amores italianos ou argentinos, macarronados num tango e saboreados em cafés franceses. Estes, tudo bem! O que incomoda mesmo é o amor na pia de lavar louça, o amor posto à prova no espaço enorme entre as presenças e, nelas, no suportar o ronco, o peido, a TPM, as acnes, os fios da barba mal varridos. Quem há de se comprometer em amar desconsiderando a si mesmo? Quem haveria de amar alguém que requeresse o supremo esforço da compreensão abnegada em tal parceria?
Imaginemos um caso não totalmente ficcional. Ela se apaixona, depois ama. Ele era tudo, tão bonito, tão macho, tão parecido ao seu pai… Supriu-lhe tudo: o ombro, o peito, o pênis, os ouvidos e os lábios eram seus. Entregou-se, lavou-lhe as cuecas, preparou-lhe lambedores nas gripes, amou-o calma e febrilmente. Só não contava com o mundo inteiro lhe zumbindo nos ouvidos como ele deveria ser: um deus grego de boca e pênis invencíveis, de corpo forte e acrobático, de olhar cafajeste e canino. Um desses homens de propaganda de uísque. Com o tempo, esse novo homem que ele, covardemente, negava-se a ser aparecia-lhe nos lugares mais inóspitos, mais inexplorados: as suas expectativas. Sua condição de fêmea foi finalmente despertada! Mas, como vivê-la, com esse homem arremedado que se tem em casa? Ela merecia o homem da propaganda do carro utilitário-esportivo, o homem que escala a montanha e cheira a amêndoas e loção pós-barba, aquele que acredita piamente, a despeito de sua própria magnífica superioridade física, ser ela a encarnação de Diana, a caçadora, a amazona cuja função única é escravizá-lo e devorá-lo tiranamente, coisa pela qual ele espera desde que se apaixonara por ela à primeira vista.
O que faz seu pobre homem? Lê também o livro e se redime, entra no bisturi e na academia, fica magicamente mais jovem, implanta cabelos, compra prótese peniana, na impossibilidade de ter sua vergonhosa humanidade genital convertida no deus Falo que ela merece?
Há uma infinidade de crônicas a respeito de mulheres objetificadas por seus homens, e outras tantas sobre as que sofrem o diabo em bullyings pela inadequação ao modelo midiático. Devem estar, em sua maioria, corretíssimas. Historicamente, não há nada mais hediondo que o sofrimento imposto às mulheres pela dominação masculina. Porém, contemporaneamente, estamos abrindo os olhos para o outro viés: essa objetificação não seria para os dois gêneros ou, pelo menos, não o tem sido?
Não vou entrar aqui no labirinto das causas. O comércio de imagens, o modismo, o conceito grego da coisa, são tudo conjeturas válidas. Prefiro a isso falar da mais triste das consequências: a morte do amor. Como se espera que dois egoístas vivam juntos? Como se satisfarão? Onde estará a alegria da entrega sem motivos que não sejam a própria entrega e o que esta causa em quem recebe a doação?
Fico feliz que se esteja lendo tanto. No Brasil, certamente, nunca se leu tanto. Entendo a leitura clariceanamente: a deflagradora da “felicidade clandestina”, embora eu ache que não deva ser tão clandestina assim. Louvo, ainda que carrancudo, meus alunos virarem devoradores de best-sellers, pois sei que não existe teletransporte para a intelectualização — hão de se respeitar os degraus. Contudo, temo muito pela desorientação tão característica deles e deste início de século, de uma maneira geral. Será que levamos mesmo tanto tempo para adolescer? A senhora litigante do divórcio tem 41 anos, é banqueira, deve ter lido e vivido o suficiente para entender os limites da ficção. Custava crescer?

14/11/12

terça-feira, 6 de novembro de 2012

DO QUE FOI EMBORA


(Para Carmélia Maria Aragão, que é outra de minhas saudades de retrato)

De ti tenho dessas saudades de retrato.
Um eu-menino que a vida pegou para criar
e criou à custa de metáforas.
Tu querias ser mineiro,
querias ser das pedras, do vento e do mar,
mas só foste terra, dessa terra onde um se deita semente
e não tem vontade de nascer.
Tenho tantas saudades de ti.
Dos teus tantos nascimentos.
Da tua esfinge indígena na face.
Das tuas cicatrizes-distintivo.
Da tua alma velha.
Quê de tuas pinturas? Onde foram parar os teus dois livros?
E os teus tesouros animados, cadê?
Tua história é o meu retrato, mas não é a foto.
É o cromo que se perdeu, mas se faz saber no monocromático do vermelho-telha.
É a cor que me roubaram do sorriso, do olho, do espírito.
Tua história, eu-menino, ficou no ar, no zingue de uma pedra de baladeira
que nunca matou ninguém
e por isso se perdeu.

06/11/12

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

AÑORANZA


Dom Quixote de La Parnahyba

(Para Camila Rocha y Renata Abreu Silvério, regalos de la vida)

Este poco que extraño
se hace mucho,
pues que se vuelve ahora
en todo lo que hay.

02/11/12