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quarta-feira, 10 de outubro de 2012

DEBAIXO DOS ARCOS


Há sempre dois túmulos no coração de um homem.
Abertos. Sem lápides. Idênticos.
Um lhe serve de sala. Limpo, fremido em seu desejo de imaculação.
Acumulam-se esperas onde se esparramam as visitas no sofá,
e horas tiquetaqueiam-se ordenadas, sem retorno — não há passado na sala de espera.
Nas paredes, não se veem o sangue apodrecido que se esvaíra dos dedos
nem as unhas arrancadas que enlouqueceram nas pedras as urgências do escape.
Argamassaram-se, rebocaram-se, pintaram-se e envernizaram-se as paredes
em papéis de parede, tudo, diligentemente, que a aparência é tudo.
Debaixo dos arcos, tudo é triunfo.

O outro é cova rasa, não dá meio metro.
A terra diz das árvores ancestrais, cujas almas ainda a perfumam.
É macia, sem pedras, plena de vermes férteis — cheira a vida.
Nele, a morte ressona menina, infante, fetal.
Jaz plácida ao lado da desesperação
e sonha consigo mesma, branda e silfídica, a cortejar os minutos que lhe passam ao largo.
Acena-lhes pueril com mãos, olhos e sorriso cheios de ternura e curiosidade.

Ao lado, festas irrompem hipócritas em madrugadas opiáceas,
convivas desfazem-se em mesuras e tédios pela sala entorpecida.
A assepsia encobre totalmente a vivacidade morta e putrefata,
muito bem cofiada nos penduricalhos contíguos ao peito,
aos pulsos e aos tornozelos.
Só não é possível arrancar dos olhos o fedor da morte
que teima em ser-se, despudoradamente.
Essa morte adulta, heféstica, insaciável,
outra que não a que lhe dorme ao lado, sonhando vida.
Aquela, a de dedo em riste, perscruta, por trás das retinas de suas montarias,
todos os vãos possíveis da sala, à cura de sonhos.
Quando encontra um, aristocraticamente, conduz seu cavalo à marcha e pisoteia-o.

Os sonhos só marejam no túmulo ao lado, orgânicos, originais,
onde o leviatã do destino do homem
ainda sequer sabe que o ovo do tempo lhe eclode no peito a prospectora definitiva
que arrastará consigo a cadeia das horas e seus passageiros distraídos.

No coração do homem, jazem duas mortes os seus labores,
pulsando sistólicas o discurso imemorial da consciência.
A consciência, essa máquina humana de matar sonhos,
dessas mortes que defloram a terra em covas onde morrem as almas, eternamente.

10/10/12