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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

MANHÃ DE OUTUBRO

 Foto: Nate Ortiz

Ah, quão bom é procurar de uma memória o gosto e descobri-la insípida… Todavia, como se já não bastassem os meus fantasmas que já estiveram vivos, vou eu a engravidar de outros… Já não basta a casa prenhe de espíritos? Já não são suficientes os mortos pelas ruas ao lado de seus vivos?
Devagarzinho, a manhã me encontrou desperto e inteiro, à sua espera. Tenho estado à sua espera durante muito tempo. Tenho procurado por ela em cada ilusão de amor, em cada café desencontrado, em cada instante agudo e viciante de melancolia — a solidão é um bicho quente que seduz e devora a gente ao mesmo tempo. Ao chegar com seus raios e seu chumbo derretendo-se em azul e amarelo, ei-la também inteira, ao seu modo de manhã: a mensageira, a que bate à porta, a que sorri fatalidades.
— Estou pronto — gritei-lhe baixinho para não acordar família, vizinhos e circunstantes —, estou pronto, estou prestes, estou posto! Leva-me!
Ela apenas me olhava, e seus raios e mormaços me respiravam. Sentia-me a respiração com a língua que lhe saltava dos olhos alaranjados — a manhã tem o seu próprio jeito de comer os que estiveram sempre acordados.
Pensei nos meus pais. Quanta espera… Quantos fantasmas de palavras que morreram sementes secas ou podres, que nunca germinaram. Pensei em meu filho, morto feto, como tudo que lhe diria. Pensei em uma ou duas mulheres que amei, e pareceu-me tudo apenas degraus da escada de meu egoísmo que levava unicamente à superfície de mim, e entendi minha profundidade. Percebi-me formado por tudo aquilo que abandonei ou que me abandonou.
— São muitos mortos — disse-me ela. Levarás todos contigo?
— Eles não têm vontade própria?
— Eles não existem.
— Não?
— Sem ti, não. Assim como eu. Assim como toda a tua espera, tua angústia e tudo que me trouxe até aqui. E, assim como eu, não existe nada, nem tu, sem que haja o desejo vão de existir. E o existido é fruto do desejo dos viventes, isso que te prende a mim e a mim, a ti.
— E se eu desejo não existir? E se eu desejo não desejar, mas sim ser objeto de outro desejo que me tire a culpa do próprio desejar, de querer, como dizes, o vão da existência?
— Não é a existência que é vã. O desejo dela é.
— De que adianta existir sem desejá-lo?
— De nada. Por isso, estou aqui.
— Raiarás apenas para mim? Não te alimentarás dos que me cercam, de minha família, meus vizinhos?
— Venho para os que me aguardam, e cada um tem seu próprio alvorecer. Não me quiseste?
— Não. Apenas te esperava. O que eu desejava era a noite, que tu, quando não te fazias, roubavas de mim sem me dar em troca coisa melhor que pesadelos. Viraste-me do avesso com aquilo.
— Germinei em ti a espera por mim.
— Pois não existes sem mim, não o disseste? Não somos eu e o meu desejo vão que te fazem?
— Ainda não o percebeste…
— O quê?
— Não existes.
— Já?
— Continuas não percebendo. Já não se aplica a pessoas como tu. Pergunta a teus fantasmas quem foste. Por mais que tentem, não te saberão dizer nada. O que foste, foste apenas para ti. Não despertaste nada exceto manhãs em teu peito. Não entardeceste como os homens, não anoiteceste como as mulheres. Não criaste, não destruíste, não influenciaste ninguém. Não te manifestaste. Passaste pelos dias como teus fantasmas: seguindo portas claramente abertas, sem chaves, sem vontade de trespassar. Quando olhavas para o céu, vias-me e fingias não me ver. Estava em cada crepúsculo, em cada sombra que estendia diante de ti. Sabia-lo. Nunca te fui surpresa. Observaste os homens e vias a mim. Deitavas-te com tuas mulheres e tocavas minha alva em seus corpos nus. Mesmo em teus mortos eu estava, mesmo quando eram coisa de que te compunhas. Já não se aplica a ti. Apesar de teres vivido o quase, tua palavra é nunca.
— E qual, a tua palavra?
— Agora.

13/10/11

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