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quinta-feira, 26 de maio de 2011

NÃO IMPORTA O QUE DIGAM


Não importa o que digam: escrever é estar perdido. Lá estamos nós, no lugar de onde as palavras vêm, cercados por elas, respirando-as, epiteliando-nos delas. As palavras são a nossa queratina. Escrever é como raspar-se, derreter-se um outro corpo que é mais nosso, mais nós que este. Em seguida, juntam-se as serragens dessa aplanação, põem-se balsâmicas ou acres ou adstringentes ou insalubres em pequeninas fôrmas, microscópicas prisões que lhe amoldam em vocábulos, em clauses, fragmentos paranormais que dialogam animicamente em silêncio. Que mistério, o seu encarrilamento… Quando bom, quando verdadeiramente bom, não se veem as extremidades da composição, e o gemer da bitola sob as rodas de ferro parece deitar aos ouvidos, aos olhos, à pele um esgarçar ou um amaciar de uma roupa tão querida, tão perdida em tantos baús desaparecidos: as palavras são uma lembrança nova, de tão velha, um espelho ao inverso, um labirinto em linha reta.
Depois, o texto!: um mar com cabelos, contrariando o que me advertia meu pai, ao me dizer do mar. O texto é um mar com cabelos de mulher. Trança-se, emaranha-se, agarra-se em espasmos violentos de coito, singelamente se afaga, arrepia-se de medo, e flui, e ondula, e arrasta, e invade, e destrói.
Faz-se um homem ao mar de coragem em borco, de vela prenhe de desejo, a carena em arco retesada de empáfia, o leme ibérico, a carranca horrenda, e vêm-lhe tufões, leviatãs brancos, hidras, Caríbdis… Que pode um homem do mar valer sem bússola, sem estrelas? Quem socorre os náufragos nessa odisseia que é dizer-se homem entranhando-se no meio das palavras? Em contrapartida, quem lhe sabe os sabores da vida? Quem lhe diz do ser-se, além do que mal lhe sabe ele próprio a serventia?
Não importa o que digam: diz-se de escrever ser um deixar-se, um abandonar-se, um libertar-se… não é! Liberta-se mesmo aquele que, em costas e enseadas, crepuscula ou alvorece junto ao sol, ou evola-se anímico com a maresia, carregado pelo vento entre as palmas e os coqueiros. Liberta-se quem colhe do solo pétreo e férreo dos livros o cálcio para o esqueleto de seu espírito. Liberta-se o homem que, tripulante de escuna, passeia em conveses de pés descalços e camisa aberta, cheirando um oceano que sente, mas não toca.
Escrever é calafetar, é macular de piche negro a carne por baixo das unhas até os ossos, é bordejar porque se vive. É não ter a alternativa da ilha, é adivinhar astros, é flertar cego com a morte. Enquanto, nos vagões-restaurantes, leem adolescentes vitorianas seus ais de se perderem, respira chama e manipula cólera o foguista, que dialoga com o inferno e gosta — o mais próximo de Deus que lhe permite o trem.

26/05/11

3 comentários:

Rebeca Xavier disse...

escrever é rs isso mesmo... e ainda mais un carocin

Eliézer Araújo disse...

É mais afogar-se também!

Carola disse...

...escrever é ler a alma da gente pra fora.

Meu queridão,
Saudades!