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segunda-feira, 18 de abril de 2011

AS FRESTAS DO TEMPO



Quando eu era criança, sabia encontrar sinais de chuva no céu, nas plantas, na minha pele. Acreditava que uma chuva podia lavar o mundo, e, quando ela parava, tudo parecia mesmo mais limpo, o ar, o asfalto, o telhado da minha casa. Gostava de chuva no telhado. A chuva rompendo o bloqueio das telhas mal-arrumadas, uma espécie de chuva só para as crianças que não podiam ir lá fora se banhar. Quando estiava, as brechas entre as telhas adquiriam a fantasia de flechas feitas de sol; por elas, entravam raios que pingavam de dia o chão escuro de tacos velhos de madeira. Clareiras se abriam. Ao redor delas, dançavam bailarinas, perseguiam-se bandidos, criavam-se vacas, voavam dirigíveis e espaçonaves. Principalmente, ao redor daqueles feixes de mundo, eu crescia. Meu coração crescia.
Por que meu coração e minha alma se encolheram de repente? Teve a ver com a diminuição das chuvas? Não, elas não diminuíram. Agora, diluviam-se. Creio ter sido quando se reformou a casa, e forrou-se um teto de cimento armado, tijolos e ferro, e, acima, um claustro de amianto cinza dividiu os dois mundos. Mas, quais mundos? Que mundo tinha eu, além daquele que entrara?
Não foi de repente. Foi um processo. Mas, talvez tenham deixado aqueles raiozinhos de sol algumas farpas daqueles dias, daquele mundo que se iluminava em segredo e me iluminava o espírito de menino; as farpas viraram árvores, jucás, goiabeiras, cajueiros, jambos, mangueiras, salsas rasteiras, coqueiros, abacateiros, laranjeiras e ateiras. As farpas alicerçaram um chão recôndito, duro sob os tacos de madeira dos quartos escuros — um casco de um navio que navega de cabeça para baixo. As farpas cresceram como eu. Criaram uma selva para o meu espírito, que se enveredou para nunca mais — tomara tenha coragem de segui-lo um dia.
Vejo hoje um raio de sol da manhã entrando pelo vidro de minha janela. Meu corpo inteiro reclama.
Lá fora, um mundo não muito diferente daquele que reside nestes espaços: violento, de cantos vivos, com passadiços irregulares, enredado de fiações elétricas — o que mais me deprime no mundo!
Não, não é verdade. O que mais me deprime no mundo é não haver para esse raiozinho de sol um telhado de criança, um chão de criança, de tacos velhos de madeira, escuro, cheio de cheiros de vida, cheiro de café na cozinha, cheiro de minha mãe, cheiro da pequena horta do velho quintal, cheiro da terra, cheiro de raiz molhada.
O que mais me deprime no mundo é o mundo mesmo. É não haver um lugar onde caiba, é viver sem saber em meio a quê e a quem.
Procurei no céu agora há pouco um sinal da infância. Olhou-me de volta o olho vazado da lua, olho cego e feminil, preditor, cheio de ausência, mas fantasma encarnado de ubiquidade — habita em tudo, ainda que nova, exceto na artificialidade luminosa dos shopping centers e nos corações opacos. Esperei-lhe os sinais. Não há vento nos jambos da rua. Não se anelou ainda o lume choroso ao redor dela, nem apascentou o sereno do tempo os cães e os gatos aos seus abrigos. Ainda sei o que procurar, meu Deus, ainda bem. Mas, será que a visão ainda se me revela?

17/04/11

Um comentário:

Moacir Eduão disse...

corre os olhos na fresta da telha
corre, de solavanco, que o sol urge como o tempo.
vem o dia convocando aos primórdios,
como se a aurora fosse uma virgem.

crepusculada prostituta,
esta manhã invasiva.
carne vermelha e herbívora,
planta das horas que ninguem plantou
mas nasce,
nasce como uma víbora
saindo da placenta dos relógios. (Moacir Eduão)

Postado em www.emquantos.blogspot.com)