Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

terça-feira, 26 de abril de 2011

RAPACE


Não lhe parecia fácil estar ali, cercada por amigos. Parecia haver neles outros rostos, outros humores. João, que era o mais próximo, não tinha o rosto que tanto trouxera entre as mãos nem as mãos que lhe haviam mapeado o corpo inteiro. Não reconhecia o bandeirante de sua própria floresta, o que lhe capturara a onça e extraíra-lhe o leite e o coração, que, dissera ele, comera inteiro, sem mastigar, para tornar-se ele próprio a fera daquela mata. Riu-se intimamente da resposta que não lhe dera: “trago comigo animais muito maiores…”.
Da onça mesmo, trazia o olhar, mas seu corpo tinha penas, asas, plumagens negras como suas pupilas. De cima, observava João, o seu coelho, a sua presa de rapace, a sua caça. Dominara sempre o ar. Desde criança, voava sobre os homens, sobre as casas, pousava nos telhados mais incólumes. Quando viajava, punha soltos os cabelos para fora da janela, a testa morena silvando o vento quente do dia. Sempre viajava de dia. Sempre se drogava de dia. Embebedava-se cedo, quando os bares abriam. Não era criatura da noite. Aves não caçam à noite, somente as corujas, e não era uma coruja. Era uma onça que voava.
— …não sei, não era ela, era, Cristina?
— Sei lá, parecia mais velha.
— Mas, faz tempo que não vejo. Podia ser. Também, eu ‘tava chapado.
Ela também estava. A conversa a fisgara. Mesmo drogada, não se entorpecia. Era selvagem demais. Mesmo João, que era o mais parelho ao seu comportamento, não tinha a sua matreirice. João era como um cavalo, forte, vigoroso, passarinheiro, não aceitava brida, mas era um cavalo, servia para que o montassem. Só ela o cavalgava. Saciava-se fácil, mas não apeava. Sentia o seu homem, sua montaria, entre as pernas leves durante horas e figurava-se uma harpia com um cordeiro entre as garras. Era como se sentia ao final.
Saltou novamente do telhado onde a pousara o diálogo. Observava novamente as criaturas, preás, borregos, cobras, novilhos mansos. Não rastejaria jamais, nem teria cascos! Continuava estranhando aqueles ares, apesar de tudo. Que cidade era aquela, com árvores que não conhecia? Lembrara-se das árvores de Niebla, pobres árvores insones, domesticadas, que nunca houveram conhecido uma única noite negra na vida. Árvores presas ao cimento das alamedas e pelos fios elétricos dos postes, como jaulas, como jaulas, meu Deus. Admitia Deus. Ele era um pássaro maior que ela, mas era um pássaro como ela. Também rapinava homens. Só se perguntava se, como ela, Ele os comia. Olhava as árvores e os homens e discernia formas e tamanhos, mas não importâncias. Eram coisas para comer e abrigar-se.
Súbito, uma pressão forçou-lhe as coxas, e sentiu um coração de onça batendo por trás de uma pele que se esfregava conhecida sobre sua plumagem. Cruzou as pernas em seu tordilho como um vento envolve um brigue, e fez-se ao mar onde aterrissara, cama de ondas xadrez onde se entendiam sempre depois do bar. Não podia voar, mas não queria: estava saciando-se.
Ao final, era noite. Incomodava-lhe a noite chegar e pegar-lhe de frio a pele. Olhou o quarto, o homem, a janela, a luz de cabeceira, os elementos estranhos daquele habitat. Eram estranhos à sua natureza. Caminhou alguns passos, sentiu precisar aninhar-se, olhou em torno, olhou João dormitando, olhou a cama, a roupa que lhe clamava o corpo, sentiu-se humana, sentiu-se mulher. Mulher! Como Cristina, como Marília! Odiava a noite. Vestiu-se. Correu as escadas, elevador é uma gaiola, é uma jaula. Não era coruja para saltar da janela àquelas horas. Vadiou às ruas, sentiu-se puta, chorou uma lágrima que jamais admitiria, teve de rastejar, teve de se elevar em cascos, em patas, teve de agradecer às árvores por telharem seu corpo frágil do céu. Teve de fazer o que lhe era o pior: reconhecer-se. Achou um lugar com um banheiro, refugou, cedeu, entrou, vomitou a alma, as penas, o ar, os olhos de onça.
Olhou os garçons como uma criança perdida olha seguranças de shopping. Dentro de si, uma floresta dormente, sem cavalos, sem animais, sem bandeirantes: somente um rio cortava em margens os dois lados negros de uma flora insípida, inválida, amofinada, domesticada como as árvores de Unamuno, que não sabem da noite mais que uma minhoca sabe da terra que escava, onde se esconde, por que vive e em que se enterra cada vez mais, sem direção, sem origem e sem fim.

26/04/11

domingo, 24 de abril de 2011

NASCIMENTO


Nascer
é sair da escuridão
ainda que se leve para sempre
a sombra

Nasço todos os dias
porque nasce todos os dias
um dia
nos olhos de sol
que entram nas janelas dos meus
e tornam bonitas
as minhas penumbras

Nasço
sempre que saio do ventre materno da noite
emergindo do cálido mar
que me enegrecem, graças a Deus
que me opacificam de substância
que me empedram no meio dos vidros

Nasço
quando me veem
existo quando me sabem
vivo quando sou

Porque nascer se faz todo dia
É ressuscitar lado a lado
e de mãos dadas
com quem compartilha do verdadeiro nascimento dos homens
— viver é tratar de deixar de ser só

24/04/11

sábado, 23 de abril de 2011

A IMORTALIDADE

(a Paulo Mosânio Teixeira Duarte, querido professor)

Disse Paulo:
“Que dia lindo! Bom para ficar fundido em abraço com alguém. Como é bom viver, mesmo não sendo algo geométrico, rsrs. Ah, se fôssemos imortais! Não digo eternos, porque pressupõe não passar tempo. Imortalidade bastaria. Mas será que não reclamaríamos da imortalidade? Somos, nós, seres humanos, tão contraditórios.”

A imortalidade que nos alcança não ultrapassa a certeza de um momento pleno de felicidade, que, por ser pleno, cheio de si em si, é eterno, é onipresente, é justificador da vida.
Ser imortal assim, vinicianamente (“que seja eterno enquanto dure”), é dizer à vida “apesar do teu tamanho, sou imensamente maior que tu, pois, dentro de ti, envolvo-te”.
Um momento no mar, um café, um abraço chuvoso, uma tarde entre AMIGOS, tudo são pequenas imortalidades, pequenas sobreposições de si ao tempo, instantes de glória inconsciente que, mais tarde, revolvidos com o atiçador da memória, viram novamente chama, e ardem, e nos aquecem em noites como a de ontem e tantas outras.
Ser imortal é não perceber a si quando se é feliz (nem à própria felicidade, caso contrário, a percepção nos torna de novo mortais).

23/04/11

segunda-feira, 18 de abril de 2011

AS FRESTAS DO TEMPO



Quando eu era criança, sabia encontrar sinais de chuva no céu, nas plantas, na minha pele. Acreditava que uma chuva podia lavar o mundo, e, quando ela parava, tudo parecia mesmo mais limpo, o ar, o asfalto, o telhado da minha casa. Gostava de chuva no telhado. A chuva rompendo o bloqueio das telhas mal-arrumadas, uma espécie de chuva só para as crianças que não podiam ir lá fora se banhar. Quando estiava, as brechas entre as telhas adquiriam a fantasia de flechas feitas de sol; por elas, entravam raios que pingavam de dia o chão escuro de tacos velhos de madeira. Clareiras se abriam. Ao redor delas, dançavam bailarinas, perseguiam-se bandidos, criavam-se vacas, voavam dirigíveis e espaçonaves. Principalmente, ao redor daqueles feixes de mundo, eu crescia. Meu coração crescia.
Por que meu coração e minha alma se encolheram de repente? Teve a ver com a diminuição das chuvas? Não, elas não diminuíram. Agora, diluviam-se. Creio ter sido quando se reformou a casa, e forrou-se um teto de cimento armado, tijolos e ferro, e, acima, um claustro de amianto cinza dividiu os dois mundos. Mas, quais mundos? Que mundo tinha eu, além daquele que entrara?
Não foi de repente. Foi um processo. Mas, talvez tenham deixado aqueles raiozinhos de sol algumas farpas daqueles dias, daquele mundo que se iluminava em segredo e me iluminava o espírito de menino; as farpas viraram árvores, jucás, goiabeiras, cajueiros, jambos, mangueiras, salsas rasteiras, coqueiros, abacateiros, laranjeiras e ateiras. As farpas alicerçaram um chão recôndito, duro sob os tacos de madeira dos quartos escuros — um casco de um navio que navega de cabeça para baixo. As farpas cresceram como eu. Criaram uma selva para o meu espírito, que se enveredou para nunca mais — tomara tenha coragem de segui-lo um dia.
Vejo hoje um raio de sol da manhã entrando pelo vidro de minha janela. Meu corpo inteiro reclama.
Lá fora, um mundo não muito diferente daquele que reside nestes espaços: violento, de cantos vivos, com passadiços irregulares, enredado de fiações elétricas — o que mais me deprime no mundo!
Não, não é verdade. O que mais me deprime no mundo é não haver para esse raiozinho de sol um telhado de criança, um chão de criança, de tacos velhos de madeira, escuro, cheio de cheiros de vida, cheiro de café na cozinha, cheiro de minha mãe, cheiro da pequena horta do velho quintal, cheiro da terra, cheiro de raiz molhada.
O que mais me deprime no mundo é o mundo mesmo. É não haver um lugar onde caiba, é viver sem saber em meio a quê e a quem.
Procurei no céu agora há pouco um sinal da infância. Olhou-me de volta o olho vazado da lua, olho cego e feminil, preditor, cheio de ausência, mas fantasma encarnado de ubiquidade — habita em tudo, ainda que nova, exceto na artificialidade luminosa dos shopping centers e nos corações opacos. Esperei-lhe os sinais. Não há vento nos jambos da rua. Não se anelou ainda o lume choroso ao redor dela, nem apascentou o sereno do tempo os cães e os gatos aos seus abrigos. Ainda sei o que procurar, meu Deus, ainda bem. Mas, será que a visão ainda se me revela?

17/04/11

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Novo selo de qualidade

Selo de qualidade

Este eu recebi de minha querida Carol (Luíza de Tom, Carolina de Chico, Carol pros amigos, inclusive eu, com muita honra), estudante, professora, CANTORA e vários etecéteras.
É com orgulho que eu vou usá-lo, Carolzita, e desculpa aí pela demora em selar (tu sabes da correria).
Devo, como é de praxe, serguir as regras.

Regra número 1: sete coisas sobre mim.

1- Eu observo, e é daí que vem a minha poesia.
2- Eu aprendo e é a partir disso que faço, entre outras, a segunda coisa que mais amo, que é ser professor.
3- Eu ouço, e vem daí o que eu falo, canto e toco.
4- Eu penso, e disso partem um bom quinhão dos meus problemas e algumas poucas soluções.
5- Eu me lembro e, assim, guarneço-me de fantasmas que me defendem dos males dos vivos, mas me emparedam no sono dos mortos.
6- Eu me esqueço e é assim que mato meus fantasmas.
7- Eu sinto e, por isso, suporto o bem e o mal que fazem a vida valer a pena.

Regra número 2: quinze blogues a indicar.

De Retalhos
Ideias Adult[er(r)ad]as
Clarão na Janela
Com Verso e Prosa
O Bazar
Verso Indeterminado
Kuzas e Más Kuzas
.cep.próprio
O Homem Encurvado
 
Um Pouco Mais de Sol
Folha do Bosque
Jenefer Fala na Cara!
Os Rabiscos de Débora
Topic 55
Não Matem a Cotovia
Páginas & Folhas 


Visitem-nos, que todos valem a pena.

FADO


ela
queria fazer de seu universo
um verso
e colocar-se dentro de uma música
e tocar tocar tocar tocar
dentro dos ônibus lotados
nos tocadores de emepequatro
nos intervalos comerciais
nos toques de telefones celulares

e sua frequência
— um universo em ondas —
estorvar-se
até que de si não sobrasse nem sequer
o assovio faminto e empoeirado dos pedreiros
ou ainda menos
o título entre aspas de sua canção
devorado pelo mofo dos sebos de discos de vinil
especializados em cadáveres melosos
e musiquinhas infantis

11/04/11

quarta-feira, 6 de abril de 2011

ASSIM FALOU ZARATHUSTRA


Raffaello Sanzio - Zoroaster Ptolmey

“O problema com as autoatribuições não são os atributos. É a inerente sensação do merecimento deles (supervalorizado, hiperbólico, olímpico, ultraterrenal) QUE LASCA!”, pensou o contemplador dos astros. Em seguida, professou:
— Olhe, pegue o que quer que seja que você tenha aí e enfie bem no meio, mas bem no meiinho, e use o seu espelhinho de Barbie pra se enxergar, e ao estrago!
— Calo-me…
— Aproveite e enfie isso também.

“Não são as estrelas feitas da carne dos homens. Não és sequer estrela. Sequer és!”, filosofou ainda o profeta.
— Aliás, enfie junto a merda desse espelhinho. Não te serve de porra nenhuma mesmo!

06/04/11

sábado, 2 de abril de 2011

TRILHA


nossas mãos e pés dizem quem nós somos
por onde fomos
o tipo de homens que somos

minhas mãos são frágeis
e quebradiças
os pés, cansados…
sei por onde estive e
quem sou

ainda assim, meu passado é adiante
e a trilha que me fez
não parece outra
senão pegadas crustáceas semiapagadas
indo e voltando
para dentro do mar

02/04/11