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domingo, 13 de março de 2011

O ESQUIFE

Carybé - Rebeca Buendía

Há o cadáver de uma lembrança num esquife de vidro sem alças bem no meio da sala de minha casa. Não adiantam panos nem enfeites: é um cadáver num esquife bem aqui, no meio de minha sala onde entram as visitas, que, educadamente, ignoram o que a mim me pesa — o seu cadáver esquifado neste féretro vítreo de vergonha.
Conferi-lhe matéria. Criei-a. Matei-a. Mas, com o diabo, quem a leva de volta ao inferno em que me deixou, e donde de volta me arrastei para esta minha incômoda sala decorada com um corpo encaixotado?
Devo, necrófago, devorá-la? Cremá-la ao Ganges, mergulhar-me num autoflagelativo ritual no fétido das águas que dissolvem suas cinzas? Devo fazer como Rebeca Buendía e carregá-la comigo eternamente num saco de ossos? Devo dar um festim hitchcockiano na ilusão de ser descoberto? Não creio. Porém, quisera — ainda que não me pareça crime matar uma lembrança ou, muito menos, ocultar-lhe o cadáver — flagrarem-me à mão, estripando-a violentamente, violando-a à faca para retirar-lhe do útero as letras do meu nome.
O corpo recende a lençóis e mar, a almíscar e cabelos. Disforma-se esguio e moreno, incólume e inexato, ainda vivaz e concupiscível. Sei-o de cor, em sua toda plena irrealidade.
Tiro as nesgas de sua mortalha transparente, estriando o tecido que sobrou, e dobro-as. Lembram-me os lenços marrons e tristes de meu pai que eu furtava quando criança. Lembro-me bem de guardar as roupas velhas, não sei para quê. Talvez, na esperança de vestir-me do mundo que lhe era cenário, quando, inocente, sentia-o sem percebê-lo. Lembro-me da necessidade tardia de aprender a remendá-las como uniformes de honras e batalhas. Ainda sobram algumas nas gavetas da cômoda. Assemelham-se às dela.
Observo-a. Parece dormir. Pior: dormitar. Parece capaz de acordar com um bocejo a qualquer momento. Tremo intimamente com a ideia, enquanto lhe sinto o insinuar de um pulso. Nesse momento, venta uma lua pela janela com gotículas de uma chuvinha incipiente, e ronda um negrume espesso rua abaixo, sobre as folhas cheirosas dos jambos. A noite assume e se faz tarde. Meus olhos ardem abertos como chagas. Não sei das coisas da noite, não sei ir ou ficar. Não sou diferente dos pensamentos mortos que me visitam limpos a éter depois do terceiro dia.

13/03/11

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