Número de sílabas (desde 11/2008)

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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

TAILLEUR


O não-estar
é um tecido que se presta a ternos,
roupas de trabalho
e consciências limítrofes.

Recomendam-se pontos duplos
e rebites nos arremates,
e nunca, nunca
secar ao sol.

23/02/11

O ONÍRICO

Ben Heine - Pencil Vs. Camera 46

Todo mundo merece um sonho de estimação
— uma casa no ar toda feitinha de déjà-vu
e uma terrinha do nunca,
onde moremos quem realmente somos.

23/02/11

domingo, 20 de fevereiro de 2011

ROSÁRIO


Há muito tempo, na tevê, eu vi um trecho de reportagem sobre Arthur Bispo do Rosário. O finalzinho. Nela, um homem desdentado, interno da Colônia Juliano Moreira, gargalhava e chorava enquanto definia diante da câmera o que ele via numa obra de Bispo. Era um tempo em que os meus versos ardiam, e cada poema era um registro de um peso grande que nunca se aliviava, embora fosse essa a impressão deixada. Os poemas eram como sulcos, pegadas fundas e deformadas pelas pedras do carroçável.
Em todo esse tempo, nada me definiu a arte melhor que ele. Ali, junto ao choro com que aquele homem se dava ao mundo que o retirou de si e tentou retirar-se dele, deu-se o meu. Por ele e por mim. Porque eu o entendi, e isso me condenou irrevogavelmente. “Eu escrevo porque o passarinho canta”, uma vez, escrevi. Esse passarinho, essa Voz que me comanda é Arthur Bispo do Rosário.

ROSÁRIO

A vida, beija-flor, é o teu estandarte.
Ali, teceste-nos.
Recriaste, porque eras escravo
De quem te recriou
— a Voz que te fez pássaro
Que desfiava um mundo para coser outro
Deu-te asas melhores que as de um anjo,
Pois, onde neles há um sopro,
Em ti, havia só humanidade.

Se fosses livre, se fosses livre
Da Colônia Juliano Pereira
— que só por ti merece menção —,
Voarias, Bispo?

A vergonha deste mundo
É não te ter flores
Quando só lhe deste amores
E te matar de fome, Rosário,
E te queimar as roupas
Que fiaste, prevendo um Dia
Que aqui já está sem ti.

20/02/11


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

OPORTUNISMO


As palavras são a desculpa das coisas para existirem.
Porém, algumas destas, oportunistas,
Naquelas vivem
Sem haver jamais havido.

18/02/11

DE RETALHOS


(Texto para De Retalhos, primeiro livro da minha muito querida Bequinha)

Há pouco menos de dois anos, em uma mesa de bar. Dezenas de pessoas, umas coadjuvantes das vidas das outras. Garrafas de cerveja aterrissando de mãos irritadas e, sob seu lume dourado, uma confluência, uma concentração de amenidades, de alegres tristezas, de amores incipientes e malfadados, de inquietações indignadas, de estados supremos de felicidade, de afirmações de si nos olhares dos outros: “sim, você faz sentido!”.

Pouco menos de dois anos. Foi ali e então que conheci (do grego que passou ao latim cognoscère, que, ao pé da letra, significa “saber em companhia”) Rebeca Xavier.
 
Saber um do outro. Soubemos quase que imediatamente.

Sempre fui um homem de poucas amizades. Como sou apaixonado por Etimologia, preciso salientar: amícus, “aquele que ama”, “aquele a quem se ama”. Nesse âmbito, tive, nos últimos dez anos, a sorte, a grande sorte da amizade sincera, aquela que sentimos na infância, mas que, depois, é anuviada pela maldade que nos espreita nas esquinas da vida — já a amizade adulta, esta não me interessa muito, porque não se fundamenta além da razão nem suporta a ausência de contextos.
 
São poucas as minhas amizades. Resistiram muito. São fortes. A de Rebeca é hercúlea, tão invencível, tão poderosa quanto uma garotinha ruiva de rostinho sujo que acaba de descobrir que duas palavras juntas podem ter um sentido que só ela é capaz de criar. Tão indelével quanto, no ar, o rastro de uma borboleta (as únicas pessoas que importam no mundo são as que se emocionam com as borboletas).

Rebeca Xavier é uma leitora e escritora que transcreve para a matéria o imaterial do sentimento humano, feminino, inquieto, o fôlego profundo ou asmático que acomete a alma diante das flores e dos estilhaços de uma vida que explode e implode ininterruptamente. Sua literatura tem uma vida íntima, recôndita como uma pérola. Tem segredos que somente se insinuam ao leitor — insinuar-se já é toda a entrega.

Sim, certo, mas assim é toda boa literatura, e todo escritor que se preze codifica-se em senhas que se revelam como o gosto doce e amargo combinado de um café solitário e amigo que aquece a vida. Qual a marca, qual a identidade da literatura dessa mulher de 23 anos, beletrista em formação, professora de fato, de olhar inquieto e fotográfico e que fabrica os próprios cadernos em que se traduz? O que tem de diferente e de especial em Rebeca Xavier?

Há suspeição em qualquer resposta que eu dê. Como em falar de Carmélia Aragão, grande amiga, professora e escritora contista que entra no coração desamparado de seu leitor e ali semeia um mistério feminil que perdurará enquanto perdurar-lhe a lembrança.

Rebeca, diferentemente, não semeia mistérios. Suas cores são, paradoxalmente, vivas e opacas, e suas palavras não retumbam nem insinuam: elas deslizam como a água de um riachinho escondido do qual o leitor tem a CERTEZA de ser o pioneiro descobridor. Porém, é um riachinho, como infinitos outros riachinhos. Ah, mas provem de sua água! Experimente-se o seu fluxo em suas veias depois de beberem-no! Então, o leitor terá a certeza de que há em si algo de novo, que de lá não sairá: um gosto e uma tez da terra nova, recém-descoberta, uma pátria somente parecida à que se esperava encontrar, visto que lá residem almas nas palavras, cheias de suavidade e vigor, de luz e de escuridão, de uma tristeza dolente, de elementos coloridos, brancos e negros que, juntos, cosem uma colcha de retalhos de sentimentos comuns a todos, identificáveis, decifráveis, mas irresistivelmente reticentes como a alma frágil e férrea de uma mulher.

Assim são os contos dessa amiga, dessa que eu amo: feminis. E que não se confunda essa predicação com o “feminino” que atribuem por aí à grande literatura de algumas de nossas grandes escritoras, cuja escrita, assim como a de Rebeca, é HUMANA, e não exclusivamente residente e patrícia da imagética da mulher (exclusivismo que, sinceramente, acho prejudicial a qualquer literatura), aquele conjunto de elementos comportamentais e culturais que munem tantos estúpidos refrões e povoam as mentes machistas e feministas, as quais, a meu ver, são a mesma coisa fisiologicamente bipartida e polarizada. Por feminil, eu categorizo um olhar dela sobre a própria alma, que, por não ter gênero, espelha o comum a todos os que partilham das alegrias e das dores de ser.

Seu trabalho individual de estreia, o livro de contos De Retalhos, que leva o mesmo título de seu blogue, está para ser lançado pela Paco Editorial dentro da Coleção Novas Letras. Conheço o seu trabalho bem, tanto quanto o Eu Vou Esquecer Você em Paris, de Carmélia Aragão, pois ambas me honraram com o acompanhamento amigo de seu passo a passo.

Leiam ambas.

18/02/11

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

INVERNO EM QUATRO PARTES


I

Elas estão lá, as nervuras negras no asfalto
pela chuva que rasteja
agora não mais divinal
agora leptospirótica

assim como ainda aqui o agora rastejante amor
— o outrora providencial cadente de um céu benfazejo
que, sem embargo, com trovões, bradara anunciando
aos quatro cantos
desesperada e retumbantemente:
dor!

II

O coração do homem, quando calmo, é como o homem:
não conhece a humanidade.

Quando acuado, retraído,
contrai-se brutamente como um bicho
— uma ratazana de esgoto em seu ninho com sua cria sem pelos —:
mostra os dentes
e se atira à morte com um grito agônico
que lhe preenche o buraco onde antes lhe houve a alma.

III

Debaixo da mesa,
posta a ceia: sapatos e meias desencontrados
que conversam como condenados
a história da rua
e de seus homens.

IV

Esta chuva é para nós
quando éramos crianças.

Deus,
por que não choveste mais cedo
quando ainda tínhamos tempo de limpar melhor as almas nas calhas
antes das desoladoras horas de desesperação?

14/02/11    03h22min