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domingo, 21 de novembro de 2010

A SOMBRA ONIPRESENTE

Estive só de todos os outros,
Mesmo daqueles de sombra, confrades dessa vida.
Mas, talvez não.
Talvez fosse por essa noite sem lua e sem estrelas,
Que, onda silenciosa, tudo une e tudo iguala.
Nela, tudo são sombras.
E, por termos sido todos os mesmos,
Não nos reconhecêramos.

Mas, quem me fiaria que, no meio daquela noite inteira,
Houvesse mais que uma sombra…
Quem me garantiria na ausência do sol
Um elucidar-me nas ruas, nos muros, na areia aprisionada do cimento,
Desenhado ali
Como um timbre do espaço que ocupava?
Como um ponteiro afirmando uma hora negra no chão?
À noite, a hora termina os homens.

Observei-a ser uma, então modificar-se
E ser vária, ser muitas, até ser tudo.
Observei-a, sabendo-me fadado
A ser só e eternamente um,
Como uma âncora sem cabos
Vestindo-se de um dilúvio lento e negro.
Vórtice de uma superposição de águas.
Até que, por um momento que ainda não terminou,
Senti-me como a âncora que se libertara do barco
Para, apêndice arrancado, perder sua gênese
E dar-se ao leito de todos os mantos no fundo do mar.

21/11/10

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

RACISMO: FLAGELO BRASILEIRO

Amigos,

Ultimamente, temos visto o racismo e o preconceito sociorregional e cultural tomarem lugar aqui, na internet, e notícias a esse respeito circularem nos meios de comunicação (muito poucas). É notório que algumas empresas de televisão se omitem quanto a algumas notícias (vide ENEM) quando isso lhes interessa, mas eu assumo que reconheci em mim ainda um resto de inocência por achar que a falta de veiculação devida do caso "Mayara Petruso" acontecera em virtude da natural sobreimportância de outros assuntos (depois, eu, burro, perguntei-me "quais?").

Hoje, por exposição de um amigo, entrei em contato com a notícia e com o vídeo a ela incorporado que seguem abaixo:

Conversa Afiada de 16 de novembro de 2010
(ou copiem e colem: http://www.conversaafiada.com.br/video/2010/11/16/video-assustador-globo-de-sc-tem-odio-de-pobre/)

Não venho aqui com o intuito de piorar ainda mais a imbecilidade de generalizações regionais ou municipais. Tampouco venho defender ou atacar o jornalista responsável pelo sítio (Paulo Henrique Amorim), ou, muito menos, a empresa de que ele faz parte (Rede Record). Há outros momentos para a defesa dessas teses. Por agora, o que, para mim, pareceu muito pior, e, por isso, quebrei meu costume de não me envolver, é o teor racista e, por que não dizer, neonazista (SIM, É ESSA A PALAVRA) com que um suposto profissional do telejornalismo (alguém cuja profissão é, acima de qualquer outra coisa, um exercício da defesa do interesse das pessoas menos favorecidas, mais frágeis, mais humildes, mais indefesas) se manifestou numa emissora afiliada à Rede Globo de Santa Catarina.

O motivo pelo qual acho muito mais perigoso o MENSAGEIRO que a própria MENSAGEM é o fato de, meus amigos, não ter sido esta veiculada por um animal de cabeça raspada tatuado com suásticas, e sim por UM PROFISSIONAL DE UMA EMISSORA DE TELEVISÃO ABERTA.

Quando uma sociedade chega ao ponto a que nós chegamos, quando as pessoas já não se sentem mais inibidas ou coibidas a esconder suas bestialidades e defendê-las abertamente em palanque sob a salvaguarda da bandeira do JORNALISMO (perdoem-me os jornalistas sérios), supostamente, fiando-se na racionalidade, ou pior, no senso comum de sua região, então, meus amigos, é hora de temermos.

E de reagirmos.

Não nós, nordestinos (terminologia que defendemos sem saber que nasceu já inventada preconceituosamente), ou os outros habitantes das regiões do Brasil sob a bandeira de suas culturas.

Eu me refiro a nós, pessoas.

Acordemos!

Esses retrocessos não o são de fato. Os pensamentos de superioridades social, racial, cultural, comportamental, artística etc. estão imiscuídos entre nós há tempos. O que vem acontecendo é a erupção de uma lava que nunca esteve adormecida, apenas contida. Entre nós mesmos, independentemente dos fatores citados acima, há esse tipo de comportamento. Percebemos isso diariamente e, por omissão, passamos adiante aos nossos filhos, amigos, alunos, colegas.

Não resolveremos isso com boicotes. Nem com a imbecil represália de Talião.

O caminho é a reconquista de nossa humanidade, que ficou perdida em nossa história desastrada por meio de nossa cegueira consumista, nossa irresponsabilidade eleitoral, nosso hedonismo, nosso egoísmo, nossa corrupção.

A meu ver, a coisa mais difícil que existe é mudar alguém por meio de qualquer coisa que não seja o exemplo. Sei disso porque esse é o meu ofício.

Se quisermos mudar, mudemos a nós.

Vamos recuperar o legado daqueles que morreram martirizados por direitos de que, hoje, desdenhamos (outro dia, vi alguém veladamente defender a ditadura sob o argumento de que seu pai dormia com a janela aberta àquela época).

É com mais tristeza que esperança que eu passo adiante essa notícia, esse vídeo e este comentário.

Porém, podem ter certeza, é com toda a teimosia deste mundo.

Um abraço a todos,

Fernando de Souza

terça-feira, 16 de novembro de 2010

OFÍCIO


(Para Carmélia Aragão e Rebeca Xavier, que também carregam esse fardo terrível da percepção)

Ela nunca disse isso, mas eu senti,
pela primeira vez, com ela, observando:
ser escritor não é uma roupa de domingo;
é uma farda.

16/11/10

domingo, 14 de novembro de 2010

INTRUSÃO

Uma saudade delicada, de pernas finas, de roupas de domingo vem esbarrando nos livros, na cômoda, desarrumando as prateleiras e a organização meticulosa da poeira do meu tempo presente. Eu observo. Não é sua primeira visita. Costuma chegar sem humor, sem alma, refestelar-se no ar dos cômodos flutuando como a luz das cinco e meia da manhã. Senta-se às vezes num canto da cama e se põe como emburrada, ainda que seu rosto não o diga. Seu rosto nunca diz. Tento adivinhar-lhe as expressões dos movimentos e dos gestos. Ela apenas me ignora gentilmente. É uma visita que sempre esteve. Comunicamo-nos apenas com o conhecimento da mútua presença.

Ela procura como se houvesse perdido a si no meio de minhas coisas. Vasculha-me as gavetas. Folheia cadernos. Desencadarça meu par de botas. Seus pés não sabem o que significa proteger-se. Calça-as. Imagino-a sentindo-se pequenina, mas, num segundo olhar, já me parece perceber uma desaprovação consternada por ser o mundo um lugar tão grande. Mas, é só por um momento. Adivinho-lhe um rubor no rosto. No entanto, subitamente, não há luz para que a veja. Também subitamente, como se meus olhos houvessem piscado por dentro, vejo-a olhando-me. Não. É através de mim? Recolho-me sem graça, finjo olhos irritados e os esfrego com uma insistência convincente. É o suficiente.

Flutuando, continua a inspeção. Armário, guarda-roupas. Bolsos das camisas. São poucos. Vai ver no armário do banheiro minhas lâminas e, no espelho da portinhola meio aberta, enxerga-se. Tenta reconhecer-se, mas seu rosto não tem linhas. Um traço sequer. Seu rosto é puro e redondo, e seus olhos não refletem a luz. Em todos esses anos, nunca se percebera. Talvez se cresse irreal demais, talvez achasse vir daí o seu trânsito livre, sua intrusão.

Vou até ela. Mais alto, ponho minhas mãos sobre seus ombros e aninho-a, acalento-a. Adivinho-lhe uma tristeza. Há dores piores. Mas, como dizer isso a quem não se reconhece na ausência das próprias lágrimas?

Como dizer que, para ela, não há tempo? Que nunca houve? Que não há novidade em sua estada, que não há surpresas a celebrar? Como esperar que minha presença, que sempre estivera ali, percebendo-a, que nunca a vira mudar, que nunca a vira um dia mais velha, mas que soube todo esse tempo reservar-lhe o olhar, desviar-lhe o trajeto, arrumar-lhe cadeiras, servir-lhe merendas e abrir-lhe janelas, como esperar que essa presença lhe mostre naquele espelho de pedra o imutável?

Como dizer a ela que sou eu que a reflito?

14/11/10

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

NOTURNO EM MI BEMOL MAIOR

O bar fecha as portas,
E as cervejas afogadas dormem
No colo de seus homens.
Um noturno de Chopin diz resignado baixinho
Em pé na plataforma da mesa
Que descansa cabeças, corpos, almas:
“Teus ouvidos são do mundo,
E o mundo te ama,
Mas eu, não!
Eu te suporto e te adormeço
E me esqueço sem que te lembres
De me resgatar os pedaços estuporados
Dentro de teus bolsos,
Sob teus sapatos,
Dentro de teu colchão.
Eu sou teu esquecimento que te diverte,
Tua bailarina puta de porcelana,
Teu vento fresco revigorante.
Eu sou tua volta a casa.
Eu sou teu noturno brumoso
Como a espuma tíbia e desleixada
Nas paredes de teu copo vazio.”
O barulho corrediço e metálico estala percussivo,
Vestindo suas notas de um dourado-verde porta-estandártico,
Enredando-lhe um samba.
Também baixinho, tropeça o noturno alguns passos
Em direção à noite também afogada,
Que o espera de boca entreaberta, meio boba,
Com um sorriso sem inteligência,
Consciente de que já a possuíra.
O bar fecha as portas,
Mas esta, a noite, apenas sorri uma palidez negra
Que antecede malditamente o compasso marcial
Das ruas claras,
Das casas claras,
Das pessoas claras.
Claras dessa mesma claridade medonha que inflama os órgãos,
Tirando do fundo noturno do mar
O esquecimento à luz maquinal,
Que parece ser mais eterna que a noite,
E destituída totalmente da sua complacência.
Dentro dos homens, alguma coisa os esquece
De onde vêm as almas,
Pois é das mães o parto, e das esposas, o rito;
À noite pertencem os homens.

03/11/10