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quinta-feira, 10 de junho de 2010

MOTO-CONTÍNUO

E assim, veio a distância.
Ora o tempo se estria ao tato,
e o espaço se sente papilarmente.
Os pés percebem o que andaram
e param, cheirando o chão,
lambendo o gosto terrenal novo,
os dedos mastigando os grãos
que sequer prenunciam:
o chão novo não prediz nada.
Atrás, na memória esburacada,
as notas das pegadas se deixaram impressas
na partitura da estrada.
Só na morte, pode-se ler a canção.
Do alto.
"Quando comecei a cantar?", perguntam-se os pés.
"Quem me ouvira? Eu, não."
Os calcanhares secos e os tornozelos inchados,
os dedos tortos, as unhas deformadas e negras de fungos,
a estrada por dentro,
o caminho sulcado nos ossos
como na pedra o açoite do mar,
o couro lanhado pelo gume do tempo.
E a distância tão clara, tão certa,
tão havida quanto percebida
como as gretas de sol na pele do rosto.
O corpo, parado, sente o hálito esquerdo do vento:
um pilar separando as onipresenças
do sol e da estrada.
Um moto-contínuo. Um pêndulo perfeito.
Os pés se perguntam:
"Ainda soo, mesmo parado?
É isto um longo agudo?"
A estrada nova não parece nova,
assim mostra a consciência do caminhar.
Dentro, na alma pergaminhada,
a máquina engendra os arcos, as cordas,
os sopros e as baquetas,
como um mecanismo de corda,
confirmando o automatismo da música.
Os pés lhe são moucos.
Imperceptivelmente, a partitura flui,
e gretam-se novas notas,
os sentidos se desalinham,
o engenho range.
Os pés, doloridos e inconscientes,
voltam à composição que só se ouvirá
quando forem asas.

10/06/10

2 comentários:

Lia disse...

Em uma primeira leitura, tal texto fisgou-me pela sua profusão de imagens e pelo silêncio que "preenche" os espaços. Lerei mais vezes e mais escreverei!

Rebeca Xavier disse...

"na memória esburacada"
cada um vai preenchendo seus buracos de pouquinho, sozinho.
mas não pareceu pra mim nada como a hora de sentar depois da caminhada.


ainda há imagens com as quais não comunguei.