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segunda-feira, 20 de julho de 2009

RECEITA MINHA DE CARNEIRO COM CANELA

Põe-se em fogo baixo um carneiro ao leite com salsa picada, cebola em rodelas grandes, tomate maduro, batata inglesa e pimenta-de-cheiro, e os coalhadores:
Alecrim, para que cheire a dia claro de sol, e orégano, para um quê de frescor de chuvisco;
Uma touceirinha de coentro bem picado — para que cheirem as mãos;
O alho roxo esmagado e com casca, para que se lhe encontre depois a delícia do desmanchar-se à língua com um gosto novo, com um encaminhar-se tranquilo de fera mansa e já dócil ao novo dono;
Alfavaca ou manjericão, para que o coração se abra, mas não muito — esquece-se de comer, de coração escancarado;
Para que o carneiro berre de gozo nos lábios, o sal e a pimenta de costume, contanto que esta seja viva, nunca morta — uma dedo-de-moça vermelha e indecente é a melhor;
Uma coisica de mel de jandaíra, para que se lambam os dedos inconscientemente;
E canela em pó fino, finíssimo, puríssima, em quantidade e aplicação de adorno, simplesmente.

Vai-se primeiro o leite ao carneiro não muito tenro, para que não se desmilingua. Panela não é sítio de borregos.
Melhor é que se deixe o carneiro antes entender-se com o sal a sós, como bons filhos de quem são.
Caso não, acrescente-se este em seguida, mas, adverte-se, pode o leite anojar-se-lhe.
Após, ponham-se juntas e bem picadas as ervas chãs e o orégano, para que o carneiro delas primeiro se farte.
Acompanham-nas a selvageria roxa da cebola e do alho e a pimenta-de-cheiro, para que nos lembremos de quem somos.
Seguintes, o mel e a pimenta, que mais devem se amar no caldo que na carne, como sempre.
A batata e o tomate — a moça em nacos e este último em esguias e oblongas lâminas — devem ser sempre os últimos, chegando à panela quando borbulhe, nunca antes.
Sua presença é por demais egoísta e pode roubar ao carneiro algo de si que ali se pôs e que dali deve somente a língua retirar.
Antes — e muitíssimo importante —, esgueire-se fina e vaporosa a canela mais pura, pisada em pilão de goiabeira, andiroba, gameleira ou juá por quem entende do assunto.
Deve-se pô-la levemente, pois canela é dona que demora a perceber a que vem, e não se envolve assim tão facilmente.
Quando não se dá dos outros, é em si. E assim se sorve. Canela não é boa coisa de se irmanar.
No entanto, uma vez que entra em seu coração o envolver-se, desatina-se e possui a alma do outro, e nela ferve, amadeirando-a docemente.
Rastreiam-se a vida no sabor no caldo, os passos, no cheiro nas guarnições, a memória, no grudado na panela.
Todavia, quando se toca a carne com a língua doida de tantos sabores, percebe-se que é aquele que a justifica.
E, como a do carneiro, perde-se nela a alma da língua, da boca, do estômago, e esse roubar-se de assalto leva, por fim, o corpo todo, que se adoça, que se amadeira, que se languesce.
Fique-se de modo que, então, registramos que canela é coisa de intermédio.
Ponha-se quando se sentir próxima a vontade de pô-la, e saboreie-se tudo com desleixo, como um sono de três horas da tarde.

19/07/2009