Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

A AURORA

Abri as portas das Casas, meus amigos.
O dia de vossas querências chega com a aurora.
A busca dos raios do vosso sol — este, que raia —
Alveja as paredes caiadas em torno de vós.
Abri também as janelas, se possível, fazei novas frestas.
Melhor: derrubai as casas. Desintegrai os tijolos,
Uni os espaços, amnesiai-vos de todas as divisões,
Que os dias de vossas querelas findam com a aurora
Que chega e entra e possui como um demônio violador.
Dos caídos. Dos insuspeitos.
Preparai-vos, que, com a alba, é chegada a desejada
De todos vós: a desinibidora, a desconstrutora, a ungente.
A luz do dia que porá por terra o despreparo de vossas almas.
O desespaço; o inespaço.
Abri as portas da Casa.
Destrancai os olhos ao que nunca quisestes verificar,
Ao que temíeis, ao que vos afligia.
Derramai por toda parte as vossas cargas,
Desatai os nós de vossos dedos e deixai que se desenlacem de vós
Os pecados de vossos temores no Pecado.
Deixai que todas as miradas vos perpassem
Como num teatro de vidro uma chuva de raios furta-cor.
Desengendrai vossas tramas, retrocedei vossos engenhos,
Desguarnecei-vos de todo cuidado.
Entregai-vos.
Abri as portas das vossas Casas, meus amigos,
Que é chegada a hora de vossas intolerantes e imperdoáveis paixões
Vagarem nuas, alucinadas, estapafúrdias pelas ruas.
Deixai que sangrem de vossos corações os ódios e os amores.
Esquecei de vós e dos vossos, que é também chegada a sua hora.
Não há mais o ridículo nem o virtuoso. O que temíeis revelar será exposto pela manhã.
E não haverá o menor traço de vergonha a perseguir-vos pelos vossos rincões.
Perdei o medo
Da mulher;
Do ladrão;
Do patrão;
Do Leão;
De vós.
Meus amigos, meus queridos amigos, apaziguai-vos.
Não haverá mais conflito entre as vossas vontades e os desideratos da vida.
Nem mais linhas que delimitem a vida e a morte.
Será o fim das horas, dos segundos, o rompimento do real e do metafísico.
Não tereis que pensar sequer.
Rompei a barreira escravizadora do imaginável.
Esquecei-vos.
Abandonai-vos, meus irmãos.
Parti todos vós como um olvido,
Congraçados pelos raios onipresentes de vossas auroras.

22/02/07

ENLUARADA

Toda noite
Enluarada
Tem escondida por trás do branco-prata
A tristeza moura de um minarete abandonado,
De uma reza engasgada,
De um partido coração.

A pérola almiscarada
Nascente
Só esconde atrás de si
O que, no peito desamado, reverbera:
Ventos brancos e estéreis,
Mas quentes
E secos, mortalmente secos,
Que servem de rio e carruagem
Para a noite vermelha e maltratada da saudade.

22/03/08

A LÁGRIMA APARTADA

Vi uma mulher numa fila
Ajeitando o cabelo com as mãos mecanicamente.
Vejo outras nas escadas, nos salões e corredores.
Vejo seus homens e seus filhos e filhas.
Suas mãos se movem e desenham no ar sombras graciosas
Sobre as mulheres que imagino.
Estas ondulam entre as outras e através delas,
Escondem-se por trás dos seus óculos,
Riem com os seus risos
E silenciam e choram dentro de seu silêncio.
Vejo mulheres que choram, tenho-as visto minha vida toda.
Por trás das camadas de roupas e da maquiagem elas choram,
Por trás dos olhos, sob a pele, dentro dos ossos,
Elas choram caladas e lamentam, e lamentam.
Em seus olhos.
O que nelas chora é a carne
E, de sua carne, tudo, tudo…

18/05/08

FLORES BRANCAS

A lua é cheia e parece rasgar a seda negra da noite.
A janela aberta me ensina a olhar o céu.
Aqui, tudo quieto e o som da água entrando na caixa cobre a alma que dormita por trás do fundo dos olhos.
Resta uma nuvem que migra esfiapada — acho que morta ou encantada.
E longe, curva-se a estrela-mãe sobre um teto de flores brancas que ressonam seu perfume.
A lua se repete multipetalada nas flores.
Vela-lhe o sono a mesma estrela, manjedouristicamente, e reza a nuvem calada as chuvas de seu ventre.
A noite é mansa.
A vida é jovem.

19/07/08

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A LUA QUE TU ERAS

Minha gente, minha roupa,
meu casaco de vento
e meu chapéu de céu:
minha ternura, onde reina?
Meu abraço não te alcança, mein cherub,
nem meus olhos te desenham o rosto,
pois não te leio mais.
Minha fruta moreninha de vida,
meu quintal sombreado de abacate,
minha luminosidade
se esconderam nos filmes da tevê
e na minha janela triste
sem ponto e sem horizonte
— tadinha, tão toda desenquadrada.
Dela, fugiu até a lua:
minha lua, a lua que tu eras.
03/12/08